A Crença (mais uma parte do livro Tempo)


Mizegui Takasugui, Mestre Guardador de Sonhos, foi espécie de anjo da guarda durante muitos anos. Apesar termos quase a mesma idade, Mestre Mizegui já era Mestre Aprendiz em Iniciação muito antes de eu mesmo ser Companheiro da Ordem dos Cavaleiros do Poder. Era fora do normal, descendente direto de um dos predestinados do novo início. E ao contrário de muitos outros descendentes diretos que viviam na sombra da sua herança, ele era especial, e de fato um predestinado. Não era o mais sábio dos Mestres na arte do combate, muito menos o mais audaz dos Mestres na arte do domínio dos saberes ocultos. Ele era, apesar da tenra idade, o melhor na arte de interpretar os sonhos, na capacidade de ouvir o coração escondido pela alma corrompida pelo tempo. 

Em tempos, em conversa nas Montanhas de Endai, já com o por do Sol como horizonte perguntava-me: 

- Já alguma vez ouviste o teu coração encoberto pela alma agastada pelo tempo? 

- Sim. Quando fiz o meu primeiro caminho da redenção, enquando tentava perceber qual a parcela do meu ser que me contaminava. – respondi intrigado. 

- E a que resposta chegaste? – voltou a questionar. 

- Que a vida pode mudar num sopro. Que sem percebermos somos dominados pela falta de alento e num ápice de ligeireza e devaneio nos voltamos a perder. – voltei a responder. 

- E como é que fizeste frente a essa resposta, meu bom amigo? – voltou a perguntar mas desta vez olhos nos olhos. 

- Acho que ainda hoje tenho dificuldades em perceber esta resposta. Quando me perco, gosto de acreditar que o tempo do amanhã acabará na sua sabedoria por acalmar os intentos da minha perdição. – respondi alinhado com a sua visão. 

- Que nome dás a esse amanhã? – voltou a interrogar 

- Boa pergunta. Nunca pensei realmente nisso … - retorqui. 

Correspondendo ao meu desabafo, colocou-me a mão no ombro direito, voltou os olhos para o Sol a acabar de se pôr e compartilhou estas palavras que me perseguem até hoje: 

- Sabes, meu bom amigo, esse amanhã é a crença. É a esperança que depositamos nos objetivos que nos definem, é um porquê que questionado se limita a ele próprio, é a causa que existe para existirmos. E quando já não há ontem nem hoje, há a crença, e essa só existe no amanhã. 

Depois disto, Mizegui puxou uma cópia do Livro dos Elementos que traz constantemente consigo e partilhou um dos seus códices poéticos redigido pelo seu antepassado: 

A inconsequência da minha mente 
O azar de ser humano 
O odor das palavras que não disse 
Continuam a ser remoinhos fechados, 
Remoinhos fechados na não exatidão da minha crença. 
Absolvo-me no entretanto do crer de todos 
Nos trópicos de latitudes enganadoras 
E nos fados de neblinas sumptuosas e recíprocas. 

Assumo a fé própria de estar algures no celeste, 
Assumo a crença que me é susceptível de não estar algures na neblina, 
Assumo nas entrelinhas da noite a fé que não vagueia nos algures 
E que sem querer entender onde desperta o seu poder 
Tento ressuscitar no acaso de ser humano. 

Pelo caminho, 
Quero ser, persistir, 
Subsistir nos celestes e neblinas do meu fantasma 
Sem o talvez de sombras e noites xenófobas 
Sem a inconsequência da minha quase mente. 

A fé que exerço não é a minha crença 
Nem o meu sarcófago lendário de que furto alento, 
É a saudação de um acaso humano 
Arrebatado no presságio de não ser vão e vazio... 

Observo-me neste oco e deserto espelho, 
Na orbe que o retém 
E que um dia evocarei de refúgio 
Na sagrada noite de sombras de aposento. 

Neste momento percebo, 
A fé que exerço é a aura da Fénix da minha alma e mente, 
A fé que exerço é a natureza de um ser bizarro, 
É a peregrinação que faço em busca da minha nobreza, 
Em busca do equilíbrio 
Da inconsequência da mente...