Do Túmulo ao Ritual

Há um momento decisivo na vida de cada um de nós que nos marca para sempre de forma diferente de todos os outros. Enquanto vos contei as minhas histórias falei-vos de algumas dezenas destes momentos, mas este que vos conto agora é sobre o compromisso inadiável, de dogma, do olhar para a frente sem nunca voltar para trás. 

Já vos contei que sou Mestre Aprendiz da Ordem dos Cavaleiros do Poder e que o meu símbolo é o Dragão de Fogo. Mas ficou por contar como tudo aconteceu. Na Ordem dos Cavaleiros do Poder chamamos ao momento em que somos entronizados como Mestre Aprendizes e nos marcam com o nosso símbolo como o Ritual dos Símbolos. Para lá chegarmos devemos passar pelo derradeiro caminho da redenção, mas sobretudo por uma prova que nos surge no ponto ar. Para os mais distraídos, só para recordar, o caminho da redenção tem sempre quatro pontos distintos: o ponto terra onde iniciamos a caminhada; o ponto água onde nos vemos perante nós mesmos; o ponto ar onde finalmente buscamos a aceitação do que é e não do que desejávamos que fosse; e por fim o ponto fogo onde firmamos o nosso compromisso com o nosso tempo e o tempo dos outros. 

É entre os pontos ar e fogo que surge a prova do Túmulo, um exercício de insanidade mental que nos faz perguntar onde realmente deveríamos estar e torna claro se estamos predispostos a assumir o lugar de Mestres Aprendizes e dessa forma passar a influenciar a vida dos outros e dos seus. 

Mestra Caelum levou-me para Ethérnia até uma velha cabana perdida atrás de uma velha ermida abandonada. À espera estava Blua, companheira da Ordem dos Cavaleiros do Poder que praticava o velho culto do Dragão Azul. 

Os praticantes do velho culto do Dragão Azul são cavaleiros com o poder da hipersensibilidade, conhecidos pela capacidade que têm de fazer os outros revelarem os seus verdadeiros demónios, mesmo aos cavaleiros mais fortes e preparados. Eu e Blua já nos conhecíamos à algumas épocas anuais, tinha sido eu a treiná-la nas artes da sobrevivência em locais inóspitos e nas artes do combate com espada. Pensava que sabia o que me esperava, mas Mestra Caelum havia-me ensinado que o Túmulo não é um caminho, é um abismo. Escalá-lo é a superação final rumo ao potencial que tencionamos ser. 

Fui fechado na velha cabana com Blua. E ela confrontou-me: 

- Então és tu o meu Túmulo? 

- Como? – questionei surpreendido. 

- Muito bem… estou pronta para perceber o que me trouxe até aqui… - continuou Blua, pensando que a minha pergunta era parte daquela encenação obtusa. 

Naquele momento fiquei também eu confuso. Não estaria também ela a testar o meu momento e a minha integridade. Nestes momentos somos ensinados a não ter preconceitos e a aproveitar o que de melhor a situação nos pode dar. Então eu continuei: 

- E o que te trouxe até aqui Blua?- perguntei. 

- Disseste no último dia que treinamos perto das Lagoas de Ribra que o nosso caminho havia acabado naquele momento. Disse-te que não aceitava, que não percebia. E agora, aqui estás… para me lembrares que o caminho acabou. Que tive de te perder, que vou continuar a perder quem gosto… que vou continuar a caminhar, a conquistar, a amar só para voltar a perder mais à frente. Dizias-me que o nosso caminho era esse, que esse era o teu caminho…… Então porque voltaste? Para me lembrares que tenho de te perder outras vez quando nunca me deste a oportunidade de continuar. – argumentou com a voz gasta como se lhe faltasse o fôlego para se fazer perceber a ela própria. 

Fiquei petrificado, agarrado ao chão sem me conseguir mexer. Esperava ouvir tudo, menos o passado que tudo fizera para esquecer. Sempre me refugiei na minha ausência para não ter que sofrer com a ausência dos outros. Blua tinha sido um desses casos. Tinha-me ligado aos seus olhos, à forma como pronunciava os poemas que escrevia e à forma como sorria desligada do horizonte. Como sabia que não poderíamos continuar a caminhar, havia preferido dar à ausência a resposta para não sofrer. Mas o meu Túmulo trouxe-me aquele abismo de volta. 

- Não voltei, foi o meu Ritual que me trouxe. És o caminho que me falta percorrer antes de receber o meu símbolo. Agora percebo porquê. – retorqui ansioso e tentando não mostrar que estava a falir emocionalmente. 

- Então é isso que sou, mais uma etapa? – perguntou-me num berro furioso agarrando-me pelo pescoço. 

- Não, não o és… eu é que sou a ausência da etapa… o que não existe do caminho. Somos finitos na existência e não sabemos como lidar com isso. Somos imperfeitos a lidar com o futuro e com o medo da distância da ternura que nos liga, da felicidade que nos fez ter lugar…. não quis lidar com a tua ausência, com o futuro sem te ver a ver o horizonte…. por isso parti…. sabia que tinha de ser assim… - respondi com uma dor aguda no peito correspondendo ao seu agarrar com um abraço. 

Paramos durante horas a conversar, choramos de forma ruidosa e perdemos a noção de onde estávamos. Não sei com que sentimento Blua saiu daquele momento de insanidade, mas imagino. Eu, por minha vez, aceitei que vou continuar a fazer da ausência a fuga para o meu “finito”, para a incapacidade que tenho para não saber lidar com a ausência de quem me marcou o caminho. O Túmulo recordou-me como é duro perder, como é sofrer pelo caminho a dois que sabemos que é efémero. 

Somos limitados, somos finitos, transitórios e passageiros. Isso não limita a nossa capacidade de sonhar, amar e subir ao topo da montanha, mas lembra-nos como o caminho é difícil e nós imperfeitos. E é bom ser imperfeito, porque é isso que nos dá uma nova razão para voltar a sonhar… 

Depois do Túmulo avancei com Mestra Caelum para o meu Ritual dos Símbolos e cumprir a suprema honra de ser o Mestre Dragão de Fogo.