O caderno de encargos (Livro Tempo)

Somos aconselhados pelos nossos Mestres em determinada altura da nossa vida a desenharmos, a escrevermos, a determinarmos o nosso caderno de encargos. São uma espécie de objetivos, de metas que sentimos ser capazes de cumprir na nossa relação com o mundo. De qualquer forma, qualquer um de nós já o fez ou vai fazendo isso todos os dias. Quem de nós nunca se permitiu a planear o que considera ser realmente importante e fazer sentido para o caminho que escolheu para si.

Mestre Ant Elael referiu-me o caderno de encargos como sendo o estabelecimento de metas existenciais e significantes que nos permitem alimentar o espírito inconformado e elevarmos o nosso nível existencial, simbólico e cósmico.

O ser humano tem a tendência para se auto deteriorar e ritualizar-se numa busca obstinada por meandros mesquinhos, egoístas que o destroem e violam a sua integridade. O divertido e rebuscado da situação é que boa parte das vezes o ser humano tem plena consciência da sua insanidade, mas insiste porque é imperfeito, fraco e "humano". O nosso caderno de encargos é mais uma forma de nos orientarmos e percebermos para onde queremos caminhar, pondo de parte esta nossa incrível tendência para desumanização.

Mas voltando ao porquê desta reflexão, tenho a plena consciência do que me deteriora diariamente e me faz ritualizar os meus devaneios. Temos direito a vivê-los enquanto nos testamos e aprendemos o caminho do tempo, mas não podemos eternizá-los, eles podem-nos tornar obsessivos e fazer com que nos percamos na nossa própria irregularidade. Não estou a afirmar que deixemos de ser irregulares, estou apenas a relembrar, que nada é tão bom que não acabe ou se deteriore, nem nada é tão mau que não possa melhorar ou mudar de sentido.

Em tempos parti, como muitas outras vezes, em jornada solitária para as Montanhas de Geray. Tinha como objetivo perceber o que queria incluir no meu caderno de encargos. Nessa jornada dirigi-me a um velho templo abandonado da Velha Ordem do Livro dos Elementos para estar em retiro. Qual não foi o meu espanto quando dou por mim no meio de uma cerimónia pagã num templo da Velha Ordem. Para não dar nas vistas e respeitar o momento, deixei-me ficar bem cá trás a apreciar o momento.

Era um ambiente estranho, e eu era uma estranha e pálida presença por entre os presentes. Mas não deixa de ser assombroso que é mesmo assim que me sinto diariamente, um estranho num mundo de estranhos que me estranham e se estranham.... 

Por breves minutos entrei em astral (momento em que o nosso ser simbólico viaja para além da nossa carcaça) e em transe fiz daquele estranho momento uma ponte entre mim e o mundo dos espíritos. Desenhei pela primeira vez, e de uma forma clara, o que acredito ter sido "o meu caderno de encargos". 

Guardo para mim o que determinei, mas fico com uma certeza, ele não é para concretizar sozinho. O nosso caderno de encargos é só mais uma oportunidade de nos lembrarmos que a nossa missão está na missão de todos aqueles que escolhemos para existirem connosco.