Há caminhos que ninguém espera que possam surgir... (excerto do livro Tempo)

Todos fazemos planos de futuro, todos nos vemos nas situações que idealizamos como ideais para nós e para os que nos são próximos. Os Mestres da Ordem dos Cavaleiros do Poder não são diferentes, todos eles idealizam no seu íntimo o potencial que cada um dos seus aprendizes pode almejar, o nível a cada um deles pode chegar, a derradeira missão que só ele irá abraçar. Alguns de nós, caídos em tentação afetiva, imaginamos que alguns deles seguirão os nossos passos, que serão uma espécie de percussores do que sempre idealizamos que eles poderiam ser. 

Hoje conto-vos a história de Lyntis, a Cavaleira Lince, alguém que foi capaz de ultrapassar o potencial que qualquer um dos seus Mestre lhe vaticinou e se perdeu nas suas próprias conquistas.

Fui Mestre de Lyntis nas artes da estratégia e das técnicas de combate com armas. Ela fez parte do terceiro grupo de aprendizes que acolhi juntamente com Blua, Sté, Nebula e Monterius. No início, Lyntis era a mais apagada do grupo, a que passava mais despercebida. Blua e Sté funcionavam como um duo dinâmico, Blua mais luminosa e Sté mais metódica e resiliente. Monterius era a mais apoteótica e extravagante, com dons de comunicação de uma predestinada. Nebula era o elemento místico do grupo, aquela que parava para perceber o sentido das estrelas e onde habitava a aura de cada um. Lyntis não tinha nenhuma destas qualidades, muito pelo contrário, para além da sua força de vontade e crer não parecia revelar nenhum talento especial. Mas a verdade estava escondida. 

Ela tinha algo diferente de todos os outros aprendizes que tinha treinado e que há primeira vista não fomos capazes de perceber. Tinha o poder de ler os poderes de cada um e de forma autónoma desenvolvê-los por si mesma. Era capaz de reproduzir e apreender o poder de cada um, recriando um poder que há primeira vista nos parecia completamente novo.

Para além de seu Mestre tornei-me seu amigo e confidente, sempre ciente da diferença de caminhos que nos estava destinada. Com as épocas anuais a passarem, umas depois das outras, Lyntis tinha deixado de ser mais uma para se assumir como aquela que conseguia dominar um pouco de cada uma das artes. Era também aquela que com mais maestria era capaz de competir com o seu próprio Mestre nos exercícios mais minuciosos. 

Com o tempo, em muitas batalhas que combatemos, já deixava que fosse ela a traçar o plano de ataque, a liderar a montagem dos mecanismos de defesa ou então a ser ela a comandar a equipa de batedores que marcava o território antes de avançarmos para qualquer combate. 

Durante uma longa época, eu e os outros Mestres perdemos o discernimento e de forma natural, ainda antes de Lyntis ser entronizada como Mestra Aprendiz, permitimos que ela desempenhasse as funções que qualquer Mestre Aprendiz já fazia. Em nenhum momento nos perguntamos se seria cedo ou tarde. Eu, pessoalmente, olhava para o caminho que Lyntis traçava e sentia o orgulho de sentir que alguém poderia continuar o meu caminho. Com certeza que Lyntis o iria continuar de forma diferente, mas caminho não morreria no que eu era. Decidi nesta altura dar a Lyntis a liderança de um grupo de jovens aprendizes ainda crianças. Nessa altura pensei que ela estivesse preparada. 

Nas primeiras épocas anuais, Lyntis fez nobremente o acompanhamento do novo grupo nativo, ao mesmo tempo que continuou a desempenhar todas as funções que já desempenhava. 

Chegou o dia do seu Ritual dos Símbolos, altura em que lhe foi atribuído símbolo Lince e o título de Mestra Aprendiz. Era altura do corte doloroso porque já passara várias vezes. Desta vez, na minha ingenuidade, pensei que não seria tão doloroso, porque ambos continuaríamos amigos, mas desta vez sem os desníveis de autoridade naturais na relação entre Mestre e Aprendiz. Por esta altura parti em viagem com outro grupo de Aprendizes para explorar novas regiões ainda desconhecidas ao Império de Gaia.

Ao fim de uma época voltei para rever Lyntis e o seu primeiro grupo de aprendizes, mas não encontrei ninguém. Procurei na velha colina onde treinara com ela a arte do manejar da espada, mas nada encontrei. De volta ao Templo onde havia começado a treinar o grupo de Lyntis reencontrei Ste.

- Ste, minha velha amiga, como estás? – Perguntei.

- Bem, nobre Mestre. O que traz de volta? – Replicou Ste.

-Vim rever-vos, mas não encontrei Lyntis nem o seu grupo. Onde estão? – Voltei a perguntar.

- Não sabeis o que aconteceu Mestre? – Questionou-me.

- Não, o que sucedeu? – Questionei alarmado.

- Ninguém sabe muito bem, mas segundo o que me explicou Mestre Canis Lupus, Lyntis não soube lidar com todas as responsabilidades que assumira. Entrou em colapso emocional por achar que não estava à altura do que os velhos Mestre esperavam dela. Pouco depois desistiu da Ordem e partiu para o exílio.

Fiquei chocado com o que Ste me contara e procurei de imediato Canis Lupus. Contou-me que não havíamos sido prudentes. Que nos havíamos esquecido que há um tempo para tudo e que mais do qualquer outro aspeto, nos havíamos esquecido de colocar a hipótese de que Lyntis também poderia falhar, também era falível, também poderia não estar preparada. O facto de durante tanto tempo ter sido ela a que mais se havia superado, havia-me cegado e tirado o discernimento para perceber que a seguir a grandes escaladas podem seguir-se quedas mortais. 

Olhei para Lyntis da mesma forma que olhava o meu caminho e esqueci-me de tentar perceber se afinal havia outro que ela quisesse trilhar. Não agi com intencionalidade nem fui irresponsável na forma como a treinei. Mas não consegui perceber a tempo que provavelmente o seu caminho não era o meu.

Agora, por estes dias, procuro por Lyntis em todos os locais que treinamos. O exílio de um Cavaleiro é como a morte emocional. Deixamos tudo para trás sem olhar para onde vamos. 

Provavelmente Lyntis nunca quis o que achamos ser o melhor para ela, provavelmente ela quis mais do que podia dar, provavelmente ela até está determinada para este caminho. Mas neste momento o que humildemente sei, é que que existem caminhos que esperávamos nunca ter que trilhar. Ainda não sei o que aconteceu, mas tenho a certeza que vou continuar a ir atrás… muito provavelmente para voltar de onde nunca deveria ter partido. Mas para certos destinos um Cavaleiro tem mesmo de ter a certeza.. e este é um deles…