Ouço o mundo que me rodeia mas só permito a crítica a quem não paralisa…


Numa das minhas muitas viagens com Mestre Canis Lupus e Mestre Chitra paramos na região de Boria, na cidade de Milkar, capital feudal de todas as terras borianas. Paramos para cear numa velha taberna vegetariana. Boria é conhecida como a região do Verde Infinito, as suas gentes baseavam toda a sua vivência na ligação com a terra, toda a sua cultura, gastronomia e arte nasciam e morriam no verde da natureza circundante. Por isso dizer que paramos numa taberna vegetariana é uma redundância porque em Boria todas as tabernas são vegetarianas.
Todos pedimos uma sopa de leguminosas e algum pão seco para continuar a viagem. Um desconhecido aproximou-se de nós, fez uma vénia em sinal de respeito e dirigiu-se diretamente a Canis Lupus:
- Mestre, a que devemos a honra de o ter por cá? - Questionou o desconhecido
- Lamento, mas se nos conhecemos não me consigo lembrar com quem estou a falar. - Retorquiu Canis Lupus
- Mestre, sou Edzo, irmão de Edo, com certeza que se lembra de mim. - Afirmou com entusiasmo o forasteiro
- Recordo-me bem de Edo, mas Edzo, seu irmão, nunca ouvi falar - respondeu Mestre Lupus, baixando posteriormente a cabeça e voltando à sua refeição.
- Mas Mestre, com certeza que se lembrará de mim. Treinou-me como seu aprendiz durante três épocas anuais. Eu próprio lhe levei o meu irmão para ser treinado por si. - Insistiu o auto denominado Edzo.
Sem responder, Canis Lupus, continuou a sua refeição. Edzo insistiu um par de vezes e eu respondi-lhe:
- Meu bom rapaz, o meu amigo já disse que não se lembrava de si, se não se importasse pedia que se retirasse para continuarmos a nossa refeição. Ainda temos uma longa jornada à nossa frente.
O rapaz lá cedeu e retirou-se cabisbaixo. Dirigi-me então a Canis Lupus:
- O que se passou meu bom amigo. O rapaz conhecia-te realmente, inclusive falou de Edo, um dos mais promissores Companheiros que treinaste, porventura até futuro Mestre. E antes que desmintas, os teus olhos tensos denunciaram-te.
- Não te vou contrariar, lembro-me bem de Edzo. Mas o que de bom ficou entre nós foi apenas o facto de este me ter dado a conhecer Edo. - Retribuiu Mestre Lupus.
- Mas porquê? - Questionou Mestre Chitra.
- Como todos estudamos e apreendemos, o Mestre que perdeu a capacidade de aprender, nada mais tem a ensinar. Edzo e Edo foram dois aprendizes com quem aprendi muito, mas apenas um deles foi capaz de chegar ao estatuto de Companheiro. Apenas um deles foi capaz de dominar o seu fogo interior e assim reger o quinto elemento, a sua sabedoria e a sua certeza na ação. O outro perdeu-se por entre ideias tão geniais quanto inertes. - Respondeu Canis Lupus.
- Mas o que aconteceu entre vós que te marcou assim tanto? -perguntei-lhe eu reforçando a curiosidade de Chitra.
- Quando treinamos os nossos aprendizes damos forma a uma rotina de treino sob a qual também fomos treinados. Com o tempo vamos moldando novas rotinas com base na experiência adquirida. São os nossos novos discípulos que nos obrigam a reequilibrar e calibrar as opções que fazemos. Edo e Edzo, para mim, foram o início desta fase de descoberta.
E continuou:
- Tudo começou quando lhes sugeri que ambos plantassem um campo de cereais em pleno Inverno, naquele ano mais rigoroso que o normal. Cada um tinha o seu. Edzo cedo percebeu que era inútil aquela tarefa e desistiu. Edo por sua vez, apesar de ter feito a mesma análise continuou a missão que eu lhe confiara.
À noite, à volta da fogueira, partilhávamos a experiência do dia e ambos mostravam-se desmotivados e irritados com a tarefa que lhes tinha dado. Ambos me questionaram até quando o tinham de fazer. E respondia sempre que as ordens que tinha dado eram aquelas e não outras, competia-lhes a eles lidar com elas. Com o tempo Edzo tornou-se permissivo e passivo, passando o dia a treinar outras artes marciais que mais lhe apraziam. Edo por sua vez, mesmo discordando de mim, tentava novas formas de dar vida aos cereais. Por vezes tentava inclusive fazer o trabalho que o seu próprio irmão negligenciara.
À noite, como sempre, encontrávamo-nos à volta da fogueira e, como sempre, ambos se mostravam frustrados e irritados. Até que ao fim de uma longa temporada Edzo se mostrou farto e me enfrentou abertamente. Não permiti que continuasse a falar, mandei-o calar, inclusive recorri à força bruta para o fazer. Neste momento Edo levantou-se e fez o irmão recuar, tentando explicar a frustração dos dois. Deixei que Edo partilhasse tudo o que estava a viver e o sentimento sobre a inutilidade da tarefa que estava a realizar. Explicou-me que o solo nesta altura não possuía os nutrientes necessários à produção de cereais e que seria melhor esperar pela época primaveril. Nesta altura, pedi que ambos se voltassem a sentar e expliquei-lhes que só reconhecia autoridade para ser criticado a quem não abandonava o seu projeto. Edzo tinha desistido de tentar e preferiu procurar outros interesses, por sua vez Edo tentou perceber a tarefa que lhe foi dada e com isso aprendeu a dominar o solo e a gerir todo o seu potencial. Apesar da inutilidade da tarefa, um foi capaz de aprender com ela, enquanto outro preferiu esperar para que os acontecimentos se vencessem a eles mesmos.

Só permito a crítica a quem não paralisa, a quem apesar de falhar continuou a tentar. Quem nunca tentou, quem nunca empreendeu não tem o direito nem o privilégio de aconselhar quem se arrisca a falhar. Neste momento convidei Edo para uma nova viagem e despedi-me de Edzo para todo o sempre. A nossa história acabava ali.