Diários do Serengeti – Parte I – A abundância duvidosa...






Por estes dias decidi viajar para fugir da dor de já nada ser suficiente. Treinei tanto, pratiquei tanto, refleti tanto que me perdi na minha própria destreza, no meu próprio círculo virtuoso de felicidade. 

Foi no meio desta guerra interior que parti para Terras do Serengeti na companhia de um velho amigo de jornada, o Mestre Guardador de Sonhos que dá pelo nome de Mizegui Takasugui. O Serengeti era uma das casas simbólicas do meu bom amigo, um espaço que procurava para retemperar energias e se encontrar a si mesmo. 

Organizamos os mantimentos e partimos. Demoramos dois dias inteiros de Ethérnia a Serengeti. Ainda de dia, decidimos pernoitar por entre a sombra de uma majestosa acácia. Mizegui ensinou-me como as tribos locais faziam fogo e já de volta da fogueira, partilhei o meu estado de espírito e o porquê de o haver procurado: 

- Estou numa daquelas fases estúpidas em que parece que sou subjugado pela minha própria felicidade. O Cosmos foi tão generoso que deixei de ter forças para absorver toda a sua intensidade, verdade e alegria. Estou agradecido e lisonjeado com todas as bênçãos do céu, mas por outro lado perdido por entre a plenitude e o deserto em que pareço insistir em existir. 

Deixei por momentos que as lágrimas se apoderassem de mim e perdi-me na minha própria dor. Estava cravado de energia. Sentia-me culpado por não estar à altura do mundo, sentia-me culpado por estar a reclamar daquilo porque todos clamavam. Neste momento, Mizegui colocou-me a mão no ombro e partilhou: 

- Nobre amigo. O Cosmos é uma matemática metafísica, mas equilibrada. Nos momentos em que não estamos bem, outros como nós ocupam o espaço de felicidade que deixamos verter e quando eles voltam ao círculo vicioso da sua ausência, outros se levantarão para ocupar esse mesmo espaço de felicidade que parece ter ficado vazio. 

Nesta matemática inconcebível, vamos subindo degrau após degrau, ao ponto em que os espaços de felicidade começam a ser o infinito real e as pausas para o abismo começam a escassear. 

Mas como são muito poucos os que conseguem subir esta escada, raramente encontras alguém doente na sua própria felicidade. 

Ainda mais raros são aqueles que não param de subir a escada e que a determinada altura saem da própria esfera do Cosmos. Nessa altura perdem todo e qualquer tipo de amparo. Inventam doenças novas de que ninguém ouviu falar. Deixam de perceber a sua própria felicidade. O mais grave é que não há cura. 

Não erraram, não transgrediram, não se anularam, apenas foram vencidos pela sua incapacidade de se perderem nos pequenos momentos de vida dos homens. Perdem a noção do pequeno e do grande. Escondem-se de si mesmos e sofrem de forma solene. 

Percebia muito bem o que ele dizia. Então perguntei: 

- E este labirinto do absurdo tem um nome? 

- Também o tento descobrir há décadas, mas não tenho certezas. Eu chamo-lhe a doença da Abundância Duvidosa. 

- E como a resolveste? 

- Procurei o meu silêncio, um amigo para falar e parei para voltar a encontrar o meu Cosmos. 

- E a que resultado chegaste? 

- Que não devemos ter vergonha do dia em que o nosso silêncio, o amigo que escolhemos para falar ou a tentativa de encontrar novamente o nosso Cosmos não chegam. Nessa altura mantém o foco, acredita no amor que dás e recebes e por magia o teu Cosmos… voltará a reclamar a sua presença.