"Para onde nos leva o verdadeiro Sofrimento?" - Diário dos Viajantes Perdidos - Parte VI


Numa jornada em que pretendia perceber para onde nos levavam as teias do verdadeiro Sofrimento decidi voltar a terras de Sadnaya, onde tinha treinado as minhas capacidades de resiliência física e psicológica em contexto mais extremo. Lembro-me do Mestre Don Danielle e dos seus ensinamentos. Aprendi com ele a viver em confinamento, sozinho, sem a companhia de qualquer amigo para partilhar conversas na fogueira da madrugada. Ensinou-me a viver em condições extremas e a adaptar o meu corpo a suportar a sede, a fome e a falta de afeto e contacto humano. Também me treinou a suportar a dor física até onde me era possível, elevando o meu nível de resposta perante a dor até onde nunca imaginei chegar.

Era a vez de passar estes ensinamentos para alguns dos meus aprendizes. Comigo viajaram Milnar, conhecida como a Cavaleira Condor, Sims e Eclipse. Milnar dominava o poder milenar do Espelho de Combate. Basicamente, em segundos, era capaz de reproduzir qualquer arte marcial ou movimento de combate que conseguisse observar no seu adversário direto. Esta capacidade permitia que dominasse dezenas de estilos de combate corpo a corpo, ficando mais poderosa em cada nova batalha. Sims controlava os objetos com a mente, mas ainda estava a começar. Eclipse tinha como arma uma enorme lança de 2 metros que manejava com uma agilidade inumana. Naquela viajem estava connosco outra aprendiz, Eleph, que não fazendo parte do meu Clã, havia partido para treinar connosco.

Depois de treinarmos alguns exercícios de iniciação, tinha chegado o grande dia. Sem aviso partimos para o vasto deserto de Naya, que rodeava toda a região de Sadnaya. Deixei-os na parte mais remota, a quatro dias de caminho. Pedi que esperassem por mim e parti. Com eles apenas tinham o seu pequeno alforge com comida para um dia e o cantil com alguma água. O meu plano era simples, eu não iria voltar. Cabia a cada um seguir o que lhes pedi e esperarem por mim ou então por em causa as minhas recomendações e seguir caminho até Sadnaya. 

As condições no deserto de Naya são extremas. Durante o dia está sempre entre 30 a 50 graus e à noite a temperatura desce para níveis negativos. Naquelas condições, as suas capacidades de combate de pouco lhes serviriam. Teria de vir ao de cima o seu instinto de sobrevivência e a sua intuição de Cavaleiro. Sem isso morreriam.

Passaram 6 dias e não tinha notícias suas. Passaram, entretanto, 10 dias. O tempo começava a ser demasiado. Apesar de Mestres disciplinados, a relação de compromisso com os nossos aprendizes é sempre mais importante que qualquer poder que tenhamos de treinar. Ao 12º dia pus-me a caminho, receando o pior, esperando, esperançosamente, que num ato de superação tivessem prevalecido, cada um, no seu melhor.

Encontrei-os, de forma inacreditável, bem. Eclipse tinha cavado uma gruta para se abrigarem graças à sua lança. Racionaram a comida e água que tinham. Só comiam e bebiam a cada dois dias. E quando a comida e água acabaram foram capazes de procurar água em velhos catos perdidos no deserto que acabaram também por servir como refeição improvisada. Para passar o tempo trocavam saberes entre eles, treinaram as suas artes de combate de eleição e recorriam à meditação para gerir a temperatura do seu corpo.

Mostravam estar debilitados, mas estavam bem, conscientes, mas abatidos e agastados emocionalmente.
- Estou surpreendido, não esperava encontrar-vos em tão boa forma. Mas pareceis agastados. O que vos incomoda? – questionei.
- Nos primeiros 3 dias estava tudo bem. A partir do quarto dia a fome começou a ser um problema. A partir do sexto dia as preocupações mudaram. O Mestre nunca mais voltava. Questionamos inclusive se voltarias. Receamos pela tua integridade. Se estaria bem ou não. Pensamos em ir à procura, mas no fim seguimos à risca as instruções que nos deste. A partir do 10º dia, a ansiedade tornou-se em sofrimento. Alguma coisa tinha acontecido. Hoje, se não tivesses retornado, iríamos partir em tua busca. – respondeu Milnar de forma agressiva.
- Então a fome, o frio e a ausência de recursos básicos não vos demoveram da vossa missão? – voltei a perguntar.
- Para ser sincero Mestre, nunca percebemos qual era nossa missão. Nunca enunciaste o que pretendias. - respondeu Sims.
- Sim, a tua observação é totalmente correta. Queria perceber para onde vos levava o verdadeiro Sofrimento, a falta do que há de mais primário e vital em ser humano. E estou esmagado pelo resultado. – esclareci.
- Esmagado!!! Como assim Mestre? – questionou Eclipse.
- Esperei que tentassem voltar a Sadnaya, que cedessem perante a fome, frio, o tempo de espera prolongado ou então que simplesmente desistissem. Mas ao contrário, encontro-vos bem, focados e em harmonia com o meio que vos acolheu. A vossa grande ansiedade era o estado em que encontrava… Esse foi o resultado que nunca imaginei.
- E agora… o que era suposto termos aprendido com este desafio? – voltou a questionar Milnar.
- Nem é tanto o que aprenderam, mas o que aprendemos. O Sofrimento leva cada um para um labirinto completamente diferente onde a saída acaba sempre por ser a que menos esperamos. Eu sofria por não saber se vocês estavam bem e vocês, contra todas as probabilidades, sofriam por mim. Esperava testar a vossa capacidade de suster o vosso sofrimento físico, emocional e espiritual. E acabei a perceber que o meu sofrimento era maior que o vosso, e eu era o único responsável por ele. Meus companheiros, o verdadeiro Sofrimento curva-nos perante nós mesmos, evita que fujamos do inevitável, devolve-nos à realidade e prepara-nos para o que tínhamos medo de ser.