"Escutar o coração do outro..." Diários do Deserto - Parte V

Eram os nossos últimos dias em Sharjah. Tinha completado a minha Inversão de Papéis com Uisce.
Ao início encarei esta aventura como um exercício de superação. Contra as previsões tornou-se numa jornada de contemplação, de tempo de serenidade e uma viagem ao nosso coração esquecido mas atento, pronto a brotar no momento certo.

Tinha sido uma jornada de escuta, de atenção plena, de lendas sobre o que era e ainda viria a ser. No meio da equação cósmica estava Uisce.

Antes de partirmos tínhamos de passar pelo Templo das Tradições Antigas, bem no coração de Sharjah. É de bom costume, na hora da partida de Sharjah, depois de mais uma jornada de treino, mestres e aprendizes visitarem o Grão Mestre Rashid Guon, o Guardião das Tradições Antigas de Sharjah.

O templo ficava no maior oásis do Deserto do Divino. Na chegada fomos recebidos por um dos seus aprendizes que nos levou a um enorme hall com portentosas colunas em azul escuro com mais de oito metros de altura. Convidou-nos a sentar. Iríamos ter uma das maiores honras por estas paragens, participar na cerimônia do chá com o Mestre Guardião das Tradições Antigas. 

Entretanto, chegou Rashid. Levantamo-nos em sinal de respeito, fizemos uma pequena vénia e voltamos a sentar-nos. Sem pronunciar uma única palavra Rashid começou a servir nos o chá. Deu um suave sinal para que bebêssemos. Entretanto perguntou:
- Mestres Viajantes, percebo que partis de coração cheio. Antes de voltardes, gostava que me ensinassem o que o deserto vos ensinou. 
Estava um pouco perdido. Mas respondi:
- Nestes dias nobre Mestre, fui lembrado que nenhum Mestre é tão sábio ou experiente que não precise de um mentor. Por outro lado, revisitei o meu coração e passei algum tempo a ouvi-lo. 
Rashid sorriu e respondeu à minha reflexão: 
- Todas as manhãs recordo a mim próprio de que nada do que direi hoje me ensinará o que quer que seja. Sendo assim, se quiser aprender, tenho de escutar. Para um Mestre, mais importante que escutar o seu coração, é ter o privilégio de saber escutar o coração do outro. 
Aquelas palavras selavam de forma arrebatadora a nossa viagem a Sharjah. Era hora de voltar a casa.