"Podemos recomeçar com aqueles que amamos todas as vezes que quisermos ..." - Diários do Deserto - Parte IV


Tinham passado quatro dias desde que tinha chegado a Sarjah, o Deserto do Divino. Os primeiros três tinha-os passado nas montanhas de Hajar com Uisce a dar forma à minha Inversão de Papeis. Quando te tornas Mestre sabes que jamais deixarás de ser aprendiz. E se o teu legado for generoso contigo, um dia, um dos teus aprendizes acabará por se tornar um dos teus novos Mestres. Era neste momento de encontro de generosidade em que me encontrava. Encarava como um privilégio ser agora, ainda que por momentos, aprendiz de Uisce.

Depois de completar o meu primeiro e segundo passos da Inversão, era altura de completar o processo. Iria-me por à prova no terceiro passo. Este leva-nos a redescobrir que "somos finitos, limitados e que nessa condição só temos um caminho, pedir auxílio e voltar ao treino."

Para o terceiro passo, Uisce optou por me fazer a vontade:
- Sei que o teu coração te chama para ir à procura do Leopardo de Hajar. Que assim seja. Entrego-me nas tuas mãos. Por onde começamos?

Se por um lado ela ia de encontro aos meus desejos, não deixa de ser verdade que completar essa prova era agora praticamente impossível. O rasto tinha desaparecido e estávamos muito longe dos seus domínios, situados nos vales mais profundos de Hajar. Estávamos agora em pleno deserto aberto. As montanhas tinham ficado para trás. 

Tinha várias hipóteses. Poderia voltar para trás e procurar um novo rasto. Poderia montar uma armadilha. Poderia ainda procurar a ajuda de terceiros. Não optei por nenhuma delas. Em vez disso, convidei Uisce para ver o por do Sol num antigo templo abandonado a algumas milhas dali onde havia treinado as artes do arco e flecha à muitas épocas anuais atrás. Era apenas meio dia de caminho.

Chegamos sem grande esforço. O dia não estava muito quente. O velho templo ficava encostado e um pequeno oásis. Hoje era apenas utilizado como entreposto por viajantes e peregrinos para descansar das viagens no Deserto do Divino.

Parte das velhas ruínas serviram de banco. Convidei Uisce a sentar-se comigo. Enquanto o Sol se punha, abracei Uisce no ombro e dei voz ao meu coração:
- Hoje decidi que ia pedir auxílio ao Tempo. Ao contrário das outras vezes que deixei o meu coração falar e que a aventura tomasse conta de mim, hoje escolhi pausar. Percebi que a procura do Leopardo de Hajar já estava completa, Mestre.
- Como assim? - questionou-me um pouco surpreendida.
- O Leopardo na sua fuga deu-nos a oportunidade de nos reencontrar-mos. Aquilo que parecia ser treino, tornou-se num momento de redescoberta do nosso "Nós". É mágico como podemos recomeçar com aqueles que amamos todas as vezes que quisermos e... de cada vez que recomeçamos.... é sempre diferente. Percebi que ao escolher-te para fazer a Inversão de Papeis estava apenas à procura de uma desculpa para estar contigo... E hoje...sem grandes rodeios... agradeço à natureza que nos envolve o facto de o ter feito.

Uisce deixou cair uma ou duas lágrimas mas não disse nada. Aquele não era um momento para palavras, era um momento só para reencontrar.