"Procura que cada um revele o seu poder..." Diários do Deserto - Parte II


Nas montanhas de Harja o Sol era arrebatador e portentoso logo pela manhã. Em poucos minutos a temperatura sobe em flecha. Só as sombras da montanha e da árvore mais próxima te conseguem salvar.

Hoje era o momento da minha primeira prova da Inversão de Papeis, compreender a sabedoria do meu último passo. Uisce, minha antiga aprendiz iria agora assumir o papel de minha Mestre e eu, de seu aprendiz.

Uisce levou-me até ao vale mais profundo das Hajar. A determinada altura parou, debruçou-se sobre o leito seco de uma ribeira perante o que parecia ser um rasto de pegadas. 

- Estas pegadas que vês... sabes de que animal são? - perguntou-me.

- Por estas paragens a única possibilidade é que sejam do Leopardo de Hajar. - respondi.

- Foste rápido. Mostras que estudaste bem o terreno. Gostava que me levasses até ele.

Naquele momento fiquei um pouco perdido. Uisce sabia que não seria  difícil para mim seguir o rasto do Leopardo de Hajar e descobrir o seu refúgio. Ela sabia que havia treinado durante muitas épocas anuais as artes da orientação e leitura dos sinais que a Natureza nos deixava em todas as suas formas. Entre elas seguir o rasto de animais de grande porte. Mas não refutei.

Como havia aprendido, deixei-me orientar pelos meus sentidos de forma natural. Quando o rasto estava mais imperceptível deixava que a minha intuição comandasse a minha orientação. Quando procuras desvendar o rasto de um felino como o Leopardo de Hajar tens de te tornar nele. 

Conforme nos elevávamos no caminho, ao mesmo tempo, ia explicando e envolvendo Uisce nas minhas decisões, umas mais pensadas que outras. Por vezes, pedia que fosse ela própria a orientar o caminho. Por momentos cheguei mesmo a esquecer-me que estávamos em Inversão de Papeis.

Andamos quase meio dia e com o anoitecer tivemos de montar, outra vez, acampamento. Nessa noite, à volta da fogueira perante duas canecas de hidromel, Uisce agradecia-me:

- Obrigado por teres partilhado comigo os teus conhecimentos sobre orientação. Mesmo tentando fazer o contrário acabas sempre por ser Mestre. Concordas?

- Não tenho propriamente uma resposta para isso. Tentei ser humilde, mas mais que isso, amiga, tentei ser eu próprio. Ou melhor, tentei ser "o eu próprio" que sempre fui contigo. Mas porque o referes? Consegui completar o primeiro passo da inversão de papeis?

- Mais que isso. Como me ensinaste, o Mestre procura que cada um revele o seu poder em vez de nos aprisionar no seu. E conforme fizemos caminho... senti que a inversão foi invertida... e que desta forma tinha feito todo o sentido.

Sorrimos um para outro. A "sabedoria do meu último passo" estava completa. Mas na minha mente uma ideia exaltava-me. Onde estava o Leopardo de Hajar?