“O amor não se entrega a quem o define…” - Diários do Caminho da Transcendência… - Parte IV

 


Nono dia por terras de Sírius. Era a vez de Khiva, a última das três capitais sagradas deste território lendário.

Faltava-me cumprir a prova do Ki, a última das três provas do Legado. O Livro dos Elementos, o livro sagrado da Ordem dos Cavaleiros do Poder, define o Ki como a energia vital que habita em todos os seres e que os interliga através da metafísica que permite a coexistência entre o Espaço e o Tempo. Segundo o mesmo livro, o Ki liga-nos uns aos outros, conecta-nos com todos os seres vivos, faz do universo um só Cosmos, onde a existência dá lugar à coexistência.

Na prova do Ki devemos revelar novamente a essência da nossa essência, o princípio sagrado inscrito no Livro dos Elementos de que “Um dia vi-te e percebi que era eu”. O princípio ensina que prevalece a Existência, o mundo tangível, e a Transcendência, o mundo metafísico onde a magia e o sobrenatural têm lugar. Por fim, na fusão ente a Existência e a Transcendência surge a Coexistência, o lugar da essência.

A prova do Ki é também chamada de Parábola dos Espelhos, nela somos confrontados com a essência que perdemos ou com a essência que quase esquecemos.

A prova tem lugar no Espelho da Cidadela de Khiva, um enorme lago no extremo norte da cidade, alimentado pelo rio Khiai. Chegados às imediações do lago devemos isolar-nos, respirar fundo, pausar os sentido e sentarmo-nos em posição de lótus nas margens do Espelho da Cidadela. Depois devemos deixar o nosso olhar mergulhar nas profundezas do lago. Enquanto isso, somos levados a um efeito de transe através de um canto de fundo pronunciado pelo Mestre do Legado de Khiva, Dill. Nesse canto ele evoca, através de códices mágicos, os Mestres da Velha Era para nos ajudarem a fazer Travessia do Ki, também chamada de Viagem da Essência.

Segui o ritual exatamente como vos descrevi. Antes fui abraçar Dill, éramos velhos amigos. Yoannes, Milnar e Pachamama ficaram no outro extremo do lago a observar o momento.

Já sentado em posição de lótus, pausei a minha respiração e deixei o meu olhar colar-se no espelho das águas do lago. Concentrei-me nos meus próprios olhos refletidos na água e os cânticos de Dill levaram-me para um transe profundo. Naquele momento sai do meu próprio corpo e comecei a caminhar sobre as águas. Estava em estado de transcendência.

Na minha direção surgia um vulto deformado que se encaminhava para mim. Era eu mesmo, provavelmente o “Eu” de um futuro ou passado alternativo.

Convidei-me a mim próprio a sentar. Olhei-me nos meus próprios olhos e comecei a sentir-me frio. O outro “Eu” tocou-me no ombro direito e perguntou:

- Há muito que foges da tua essência?

- Como assim? – respondi, em estado quase gélido.

- Há muito que esqueceste o que é amar. Passaste tanto tempo a tentar interpretar o amor dos outros que te esqueceste do amor verdadeiro. Aquele que nasce em nós e nos desperta para a coexistência com o Universo.

Não precisei de muito tempo para perceber o que o meu reflexo me estava a tentar dizer. Tinha passado tanto tempo no treino, no universo cósmico dos outros, que apenas conhecia a Existência e a Transcendência. Tinha deixado de ligar os dois mundos. Nessa altura, o meu reflexo lançou-me o desafio final.

- Acorda do transe e relembra aos teus aprendizes o poder do Amor. Depois abraça cada um deles e regressa à tua essência, aquela que não se esquece da Coexistência.

Voltei do transe. Levantei-me e dirigi-me até Yoannes, Milnar e Pachamama. Abracei intensamente cada um deles, convidei-os a sentar, partilhei o meu transe com eles e relembrei-lhes uma das mais importantes lições que o meu treino para Mestre da Ordem dos Cavaleiros do Poder me tinha revelado, o da essência do Amor:

- Há muitas épocas anuais, Mestra Caelum revelou-me a essência de Amar o Universo. Ensinou-me que o amor assenta em quatro pilares essenciais: a liberdade, o compromisso, a disponibilidade e o cálculo do que nos é vital. Mas lembrou-me que os pilares apenas servem de base inacabada. Para Amar o Universo, um Mestre deve descobrir que a essência do Amor habita na genuinidade, na intuição e na maturidade. Por fim, lembrou-me que o Amor é coexistência, e que esta não tem definição. Caelum dizia sempre….. o Amor jamais se entrega a quem o define.