“O meu segredo é a Solidão” - Diários do Caminho da Transcendência… - Parte III

 


Sétimo dia por terras de Sírius. Próximo destino, Samarkand. Nos próximos dias teríamos de passar pela prova do Bushido, a segunda das provas do Legado.

A prova do Bushido é onde renovamos os nossos votos enquanto Mestres que compreendem o seu Bushido, “que isto nunca foi sobre ti, foi sempre sobre os outros”. Como já vos contei, nesta fase somos levados a reiniciar o “Eu” que vive no “Nós”. Para tal, temos de completar a prova das Areias Infinitas, o nome dado à prova do Legado correspondente à fase do Bushido.

Para completar esta prova devemos convidar um Mestre que acompanhou o nosso Caminho da Redenção e a nossa evolução como Mestres frágeis, mas resolutos, falíveis, mas generosos. Para os que não se lembram do que se trata do Caminho da Redenção, é todo o caminho de treino que enfrentamos até sermos Mestres da Ordem dos Cavaleiros do Poder.

Para esta tarefa convidei Mizegui Takasugui, Mestre Guardador de Sonhos, e meu amigo de sempre.

Durante a prova das Areias Infinitas somos deixados à mercê das areias movediças dos claustros centrais do Templo Mãe de Samarkand, também conhecidas como as Areias Infinitas. Através de um sistema de cordas montado sobre os claustros, caminhamos até ao epicentro das areias e deixamo-nos cair sobre elas. A partir daí não há registos sobre o que acontece. A função do Mestre convidado era uma incógnita, sobre isto também não haviam registos.

Estava emocionado, era a minha primeira vez em Samarkand, conhecida como a cidade do Dragão do Infinito, onde em tempos tiveram lugar as batalhas decisivas que permitiram o fim da Velha Era. Mas essa é outra história.

Apresentei Mizegui a Yoannes, Pachamama e Milnar. Naquela noite visitamos uma das muitas tabernas à volta do Templo Mãe de Samarkand. Eu e Mizegui recordamos os nossos tempos de treino enquanto aprendizes e Milnar e Pachamama aproveitaram para satisfazer a sua curiosidade sobre parte do meu passado. Yoannes ficou mais na posição de observador. Mizegui aproveitou para me deixar embaraçado. Entretanto cada um foi pernoitar.

No dia seguinte era altura da prova do Bushido. Como manda a tradição local, antes de entrarmos no Templo Mãe purificamos o corpo através de meditação conduzida pela Anciã do Templo. Em seguida dirigimo-nos aos claustros. Subi até ao primeiro andar, sobrepus-me sobre as cordas, fitei as areias, e chegado ao epicentro das mesmas deixei-me cair sobre elas. Sabia que perante as areias movediças quanto mais lutasse, mais me afundaria. Por isso só me deixei ir.

Inicialmente não estava a acontecer nada, apenas me estava a aborrecer enquanto me ia afundando lentamente. Nos claustros superiores, Yoannes, Mizegui, Milnar e Pachamama acompanhavam aquele estranho momento.

De repente, deixei de me enterrar. Tentei mexer-me, mas pura e simplesmente não consegui sair daquela espécie de prisão que me parecia esmagar. Num ápice, como se as areias tivessem ganho vida, comecei a submergir a grande velocidade e, numa questão de segundos, perdi os sentidos. Nesse mesmo instante fui transportado para um estranho mundo de cores infinitas onde não ouvia nada. O silêncio era denso e desordenado. De repente, sinto um toque suave nas minhas costas. Viro-me, mas não estava lá ninguém. Foi então que ouvi a voz de Curama, o meu velho Mestre das Artes da Solidão:

- Abraham, faz muito tempo que não nos falávamos, mas acho que sabias que este dia voltaria para ti.

De um momento de espanto, passei para um momento de terror. Tinha sido com Curama que havia treinado os meus pesadelos. Na preparação para Mestres somos obrigados a treinar o confronto com os nossos maiores medos. O meu era o da Solidão, o silêncio desconfortável e infinito. Curama tinha sido o meu Mestre mais sombrio, o responsável pelo treino dos meus poderes mais importantes, mas alguém que evito recordar por tudo o que faz lembrar que sou.

Perante o seu chamamento, respondi:

- Mestre, é com surpresa que sinto a sua presença. Porque nos voltamos a encontrar?

- Não estranhes o momento, foi o teu coração que te trouxe até nós. A prova do Bushido revela-nos o medo que realmente nunca fomos capazes de superar… e o teu, como sabes, é a Solidão.

Nesse momento o silêncio infinito voltou e a minha mente foi invadida por milhares de memórias em que me senti só, sem chão e infinitamente frágil. Entretanto as imagens começaram a assumir a forma de um turbilhão e a imagem de Curama surgiu-me pela frente. Nesse momento, Curama pegou-me pela mão e segredou-me no silêncio do momento:

- Quando somos abandonados pelo mundo, a solidão é superável. Quando somos abandonados por nós mesmos, a solidão é quase incurável.

Logo a seguir senti o seu abraço e despertei no colo de Mizegui.

Estava cansado, sem forças, mas percebia muito bem o que havia acontecido. A minha solidão vivia sobretudo em mim e esse era um caminho que ainda havia de trilhar.

Tinha sido tudo inesperado, e neste momento tinha conhecido o meu “Eu” que fugia do “Nós”.