"O que eu quero é o que eu preciso?..." - Diários das Terras do Gelo - Parte III


Quinto dia por Terras de Rekiam. Hoje iríamos experimentar, eu diria mais, iríamos enfrentar as águas geladas do Lago Mitvan. 

Ivar, quem nos havia convidado para cá estar, tinha sido treinado na sua resistência e resiliência nas gélidas montanhas de Rekiam. Durante os treinos de sobrevivência, foi ensinado a pescar em profundidade nas águas do Mitvan, a temperaturas negativas. 

Em Rekiam os meios de subsistência são precários, por isso todos os recursos que a natureza dispõe são explorados, mas de forma harmoniosa. Nem eu, Mestre da Ordem dos Cavaleiros do Poder, nem Cleo, guerreira de muitas guerras que o mundo há-de contar, tínhamos qualquer experiência em territórios tão inóspitos. 

Ivar desafiou-nos a aprender a pescar em profundidade. Hoje só jantaríamos se fossemos capazes de pescar a famosa truta mitvare, o peixe mais abundante do lago. Ivar era Mestre da Ordem dos Cavaleiros do Poder especialista em artes de sobrevivência, caça e orientação. Pescar com ele não seria usar uma simples cana de pesca. Implicava mergulhar a mais de 15 metros de profundidade, não perder os sentidos bem ventre das águas gélidas do Mitvan e, com um arpão, ter o discernimento de capturar uma truta mitvare no seu habitat natural. Pelo meio tínhamos de apurar os sentidos, a focalização e a intuição. Mais que ouvir ou ver, tínhamos de sentir as águas, a sua corrente e movimento natural. Tínhamos de ser parte da natureza do corpo das águas do lago. 

Ivar treinou-nos durante horas. Era altura de enfrentar mais um desafio. Sem grande surpresa não conseguimos apanhar qualquer truta. Para nossa satisfação, Ivar havia conseguido, o que salvava o nosso jantar. De qualquer forma, nunca me esquecerei de quando voltei à superfície. Ao sair da águas, mal sentia o meu corpo, mas a visão das majestosas montanhas calejadas de neve que se erguiam a milhares de metros acima do lago numa sintonia perfeita com a natureza em redor, deixou-me em silêncio durante uma pequena "eternidade". Sabia que tinha de ter estado ali. Um imponente por do sol completou aquela momento de plenitude.

Há noite, à volta da fogueira, enquanto cozinhávamos a truta que Ivar tinha capturado, partilhávamos a importância de um guerreiro saber escolher o essencial, nomeadamente em territórios como Rekiam. Conversávamos que muitos guerreiros haviam sido treinados na fartura e que nada sabiam sobre o silêncio ou a harmonia. Apenas interpretavam o seu papel enquanto falsos heróis de guerra. 

No meio desta conversa, Ivar colocou-nos uma questão: 
- Sabeis a diferença entre o que vocês querem e o que precisam? 
Não era uma pergunta que estranhasse. Respondi: 
- Eu tenho uma resposta mas hoje, Ivar, é dia de ouvir a tua.
- Bem amigos, a verdadeira sabedoria sobre o equilíbrio é quando percebemos que o queremos é o que precisamos... 

Entretanto, já tarde, apagamos a fogueira. Cleo e Ivar foram pernoitar. Eu fiquei um pouco mais, em silêncio, frente às águas do Mitvan, a olhar as estrelas e a Aurora Celestial, perguntando ao tempo: " Afinal o que quero é o que eu preciso?"