“Preferes o sonho ou a ilusão?” - Diários das Neves Eternas – Parte II


Este era o nosso terceiro dia em Kirtipur, mais precisamente em Katmandu.

Por estes dias ficamos em casa de Mestres Vijay. Para além de um importante sacerdote da Ordem dos Cavaleiros do Poder, Vijay era um ótimo anfitrião.

Nos primeiros dias antes de nos elevarmos nas Montanhas das Neves Eternas, deu-nos a conhecer todos os recantos e locais obrigatórios da cidade capital de Kirtipur. Visitamos os Templos de Asimur, podemos meditar com os locais nos Pátios de Uai, o Profeta, e tivemos o privilégio de participar nas cerimónias do Shaide, momento de oração onde os devotos da religião Uahíde entregam oferendas como forma de agradecimento das bênçãos que possuem e pedem boa fortuna para os seus entes queridos.

Mas o momento mais intenso foi podermos assistir à cerimónia do Pakdum, momento fúnebre dos Uahíde. Nos nossos territórios corresponderia ao que chamamos de funeral, embora por estas bandas seja completamente diferente e com um significado que nos transcendeu a todos.

Em Kirtipur, os defuntos são cremados numa fogueira em cerimónia pública, enrolados num lençol púrpura. O significado de tal rito consiste em devolver a alma à natureza. Por outras palavras, o corpo terreno parte para a vida que sempre foi eterna. Para os Uahíde, a vida é só uma e tudo e todos fazem parte do mesmo cosmos. Acreditam que a energia que assumimos nunca desaparece, apenas se transcende entre todos os seres vivos e “inanimados”. Também acreditam que somos um “fluxo de energia” que volta várias vezes ao ponto de partida, que é ao mesmo tempo o ponto de chegada. Para os Uahíde a vida é um círculo sem fim, sem início, desigual, desordenado, mas estranhamente equilibrado.

No final da cerimónia do Pakdun, Yber estava estarrecido e Lucy, meia perdida, perante o espetáculo visual que tinha tanto de nobre como de aterrador. Eu estava, apenas estava. Nesse momento questionei Vijay:
- Vijay, depois da partida para a vida eterna, o que nos espera?
- Aí meu amigo, voltas para o teu sonho.
- Para o sonho? Como assim?
- Enquanto vivemos humanos somos levados pela utopia, pelo sonho, pela construção metafísica de que nada alguma vez é terminado. Recomeçar é voltar a sonhar que realmente a vida pode ser assim, em vez da ilusão que qualquer um de nós pode tudo.
- E acreditas nisso Vijay?
- Bem amigo. Prefiro o sonho à ilusão. No sonho sabe-se que temos os olhos fechados, na ilusão julgamos tê-los abertos.