Sexto dia por terras de Kirtipur. Hoje a grande subida ao Annapurna começaria.
Estava com um certo receio de como o meu físico responderia. Durante toda a minha vida treinei até à exaustão as minhas dimensões físicas, espirituais e sociais. Mas subir ao Annapurna era um desafio completamente diferente do que já havia experimentado.
Temos de atravessar subidas extremas sujeitos a avalanches que nos visitam sem aviso. Temos de efetuar subidas intermináveis por entre terrenos movediços polvilhados por uma neve que nos enterra até ao pescoço se tivermos o azar de nos descairmos nos seus domínios. Por fim, são territórios dominados por Clãs Guerreiros que não permitem a passagem a qualquer um.
Eramos seis nesta viagem: Soto e Oriume, guerreiros Naga, Vijay, Mestre da Ordem dos Cavaleiros do Poder, eu e os meus amigos Lucy e Yber.
Nesta etapa viajaríamos de Pokhara a Ghondruk, terrenos dominados pelo Clã Sherpa. Como já vos tinha contado, os Sherpas são famosos pelos seus templos e pelas suas técnicas de combate noturnas. Para tentar evitá-los viajaríamos de dia. Durante a noite a conversa seria outra.
Oriume fez-nos cajados de caminhada, para nos apoiarmos e melhor fazermos frente à subida inevitável.
Ao contrário do esperado, a subida até Ghondruk foi uma experiência que nos mudaria. De início evoluímos por entre a imensidão das montanhas em passo lento para evitar acordar a natureza. Pelo meio parávamos em pequenas aldeolas onde fomos sempre bem recebidos. Em duas ocasiões paramos. Numa para tomar chá a convite de locais e noutra para pedir indicações. Eram aldeias Sherpa. Todos esperávamos ser recebidos de forma ausente e desconfiada, mas pelo contrário, a bondade e generosidade de cada um era genuína. Pareciam realmente felizes por nos receberem.
Numa aldeia em particular fomos obrigados a parar porque uma avalanche tinha interrompido o caminho. Teríamos de pernoitar ali, bem no coração dos territórios do Clã Sherpa. Apesar de a população nos ter recebido com alegria, dar de cara com um Guerreiro Sherpa é uma história completamente diferente. Pelo menos achávamos nós.
Nessa noite fomos apresentados a Naraian, um importante Guerreiro Sherpa e líder da aldeia. Ao contrário do esperado, fomos, também por ele, calorosamente recebidos. As lendas e as histórias de hostilidade eram apenas isso, histórias de um tempo que ninguém sabia muito bem onde havia começado.
Convidou-nos para cear com ele nessa noite. Convite que aceitamos entusiasticamente.
A conversa foi longa. Enquanto ouvia Naraian pensava que me havia deixado vencer pelo preconceito, pelo boato infundado. Com humildade, pedi a palavra para intervir:
- Nobre Naraian. Permite-me intervir. Queria antes de tudo agradecer a calorosa receção, mas devo-te um pedido de perdão. Antes desta aventura só queríamos evitar a presença dos Sherpas, mas depois deste momento, deste dia… percebo que o meu inimigo era apenas uma ideia descabida do meu preconceito imbecil. Sinto-me mesmo mal pelo que pensei. Queria pedir-te a ti e ao teu povo um humilde pedido de desculpas.
Naraian sorriu e de forma educada respondeu:
- Caro Abraham. Nunca serás meu inimigo. Na história poderemos ser adversários, mas nunca inimigos. O meu inimigo sou eu próprio, a minha ignorância, o meu apego e os meus ódios. Neste caso, tu foste o teu próprio inimigo.
Aquele momento não era uma nova lição, mas lembrou-me, lembrou-nos de forma clara que não era do meu treino físico que devia ter duvidado, era do meu treino de caráter.
No dia seguinte, juntamos os nosso pertencesse continuamos caminho. A estrada estava desimpedida. Mas desta vez com um novo guia, Naraian. O que aí vinha seria lendário.