A alma da Montanha - Diários das Neves Eternas – Parte VI

 



Oitavo dia em Kirtipur.

Hoje era a última travessia antes de chegarmos ao topo do Annapurna.

Hoje seria o dia da neve. Tínhamos de atravessar o vale de Gorephani até ao último ponto de paragem antes do cume do Annapurna. É um vale deslumbrante, completamente esmagado pela neve eterna, com enormes cedros e ciprestes que se sobrepõem no horizonte da paisagem. O caminho parecia acessível, por isso decidi seguir a rota sozinho.

Com o apoio de um cajado acelerei o passo e avancei por entre a bruma da densa floresta.

Quando dei por mim era acompanhado por um cão pastor. Estranhei, mas como ele parecia confortável na minha presença deixei-o estar.

Enquanto caminhava, o meu silêncio interior apoderou-se dos meus sentidos, as dores do meu corpo como que haviam desaparecido. Aquele espetáculo visual, a paz do caminho trouxe-me de volta as forças que faltavam.

Parei numa pequena ponte que dividia o vale. Ao fundo, uma cascata completamente congelada servia de cenário de fundo. O cão pastor continuava comigo. Quando me sentei, também ele se sentou e encostou-se comodamente em mim. Parei, senti a respiração, acarinhei o meu companheiro imprevisto e cantei. Em vez de se levantar, o cão pastor parecia ainda mais confortável. Partilhei com ele parte da minha refeição de improviso.

Entretanto, levantei o equipamento e segui novamente caminho. O cão pastor continuou comigo.

Quando cheguei ao acampamento, os meus amigos já me esperavam. Virei-me para Naraian e o resto do grupo e apresentei-lhes o cão pastor. Ao virar-me, ele tinha desaparecido. Todos ficaram um pouco confusos. Ninguém me tinha visto chegar com qualquer cão. Naraian serenou os ânimos e questionou-me:
- Abraham, quem te acompanhou era um cão pastor castanho e branco de médio porte?
- Era sim, Naraian.
Naraian sorriu, convidou todos a sentar e contou-nos:
- Quem te acompanhou Abraham, foi Cálé, o Guardião Fantasma das Montanhas das Neves Eternas. Reza a lenda que Cálé se faz revelar aos que escolhem ouvir o silêncio das Montanhas e o deixam entrar. Calé escolhe acompanhar os que deixam os sons sagrados da montanha falar com a sua alma. Hoje foste um privilegiado. A tua alma conheceu a alma da Montanha.