A lenda do Demónio do Espelho - Diários do Espelho – Parte I

 


Estava de volta às Ilhas do Vórtex de Milénia, o arquipélago onde havia encontrado o meu refúgio. As Ilhas do Vórtex são as mais longínquas e inalcançáveis de toda a Milénia. São um território sinuoso, mágico, coberto de lagoas negras e cascatas intensas. O verde das montanhas perdesse numa neblina constante. São duas as Ilhas de Vórtex. A Vórtex Maior, por onde estávamos neste momento e a Vórtex Menor.

Por estes dias visitava o meu velho amigo e companheiro de treino, Mestre Edh, o Mestre Dragão da Montanha. Edh era a voz da razão, calculista, o matemático e negociador das causas impossíveis. Calmo e pacífico, era exímio na arte do combate corpo a corpo. Lia o adversário no campo de batalha como ninguém.

Edh havia feito de Vórtex o seu abrigo, onde procurava a paz interior e retemperava as energias para o próximo combate. Nesta fase estava a escrever o seu livro de memórias. Para tal pedira-me que o ajudasse a rever os seus velhos diários, de forma a sinalizar os escritos que considerava terem os saberes mais relevantes.

Estávamos numa cabana, no sopé das cascatas de Bacanis, no perímetro norte de Vórtex Maior. No meio das nossas pesquisas encontrei um rascunho que dava pelo nome “Lenda do Demónio do Espelho". Chamei Edh e nesse momento dedicamos total atenção aquela memória.

Nas palavras de Edh, reza a lenda que entre ti e o teu Demónio Interior existe uma enorme montanha coberta de neve densa que vos separa e vos liga ao mesmo tempo. O dia em que terão de se enfrentar é uma inevitabilidade, o que sobra é o modo como fazes o caminho. Podes pedir ajuda, treinar na maior das intensidades, mas o momento do confronto direto será sempre a sós. O teu Demónio Interior mais não é que o Espelho que reflete as ruínas da tua pior versão.

Ultrapassar a montanha é um desafio do qual não podes nem queres fugir. Entre ti e o teu destino existe um caminho muito ingreme que terás de percorrer. O caminho é frágil e cheio de perigos. Se o fizeres depressa demais corres o risco de uma avalanche te engolir. Se fores devagar demais corres o risco de a neve ficar mais espessa e ficares preso no coração da montanha. A decisão não é fácil.

Podes sempre escolher não percorrer o sinuoso caminho e aprender a conviver com o teu Demónio Interior como o Espelho de uma parte de ti que aprendeste a aceitar. Outros ainda têm o dom da paciência, do compromisso e da disciplina e sabem que devem esperar pelo dia em que a neve derrete para que sejam capazes de ver toda a extensão do caminho. O problema desta opção é a possibilidade de o dia em que a neve derrete nunca chegar.

Depois de partilhar a sua visão, Edh questionou-me:
- Entre todas estas hipóteses, terás sempre de escolher uma. Qual delas seria?
- Há uma que não referiste, meu amigo.
- E que hipótese foi essa que não referi?
- Entre todas essas hipóteses escolho qualquer uma delas, mas não para mim. Vou deixar que seja o meu Demónio Interior a ter de escolher. Não serei eu, mas ele a ter de fazer o caminho até mim. Depois conto-te como foi.