A sombra ressentida - Diários da Superstição - Parte II




Estava no meu terceiro dia por terras de Sião. Vinha rever a minha velha amiga, Mestre Samantha, e treinar com Mestre Pexár as Artes da Elevação. 

Hoje aprofundaria o meu autoconhecimento sobre o primeiro pilar das Artes da Elevação. Este determina que: "o ressentimento desgasta a alma, ocupa o espaço que não temos... por cada ressentimento irrefletido procura na natureza o espaço que perdeste". 

Pexár levou-nos até às margens do rio Mekong, o maior rio de Sião, considerado sagrado por ser o último refúgio de todos os que morrem por estas partes. O rito fúnebre de Sião impõe que depois de mortos sejamos cremados e lançados ao Mekong em noite Lua Plena. 

Para ser mais preciso no que vos estou a contar, fomos até à Fortaleza de Opih, no extremo sul do Mekong. Pexár iria ensinar-nos o Akium, exercício de meditação que nos funde com a nossa "sombra ressentida", que nos leva de volta às memórias que fingimos não existir, mas que na penumbra se mantêm vivas nos detalhes do dia a dia. 

Para praticar o Akium temos de aprender o seu códice secreto cantado no silêncio da nossa mente encostados a uma árvore na mais profunda solidão. 

Eu e Samantha precisamos de pelo menos meio dia para perceber e interpretar o códice secreto do Akium. Era hora de lhe dar forma. Caminhei pelas margens do Mekong até ficar sozinho. Encostei-me no tronco de um frondoso embondeiro. Fechei os olhos, equilibrei a minha respiração e evoquei o Akium. De início não estava a sentir nada, achei mesmo que estava a forçar.
 
Entretanto abri os olhos e de costas vislumbrei alguém que já não via há muito tempo. Era Alcatium, o meu primeiro aprendiz a quem havia renegado. Quando fui até ele e lhe toquei, voltei do transe e ai sim, abri realmente os olhos. Estava confuso. Por um lado percebia a visão que tinha tido, por outro lado, não entendia de que ressentimento se tratava. A minha situação pessoal com Alcatium estava, na minha óptica, devidamente resolvida. Para os mais curiosos, eu e Alcatium separamo-nos pelo facto de este ter começado a usar os seus poderes de liderança e combate para fins pouco íntegros. Este havia abandonado a sua própria filha.

Partilhei a minha visão com Pexár. Este deu-me a sua interpretação: 
- Muitas vezes o ressentimento do passado volta em forma de memória não pelo que ainda representa emocionalmente mas pelo exemplo que pretende transmitir. É um marco que ajuda a reajustar o caminho em que não te queres voltar a perder. 
As palavras de Pexár faziam sentido. No fim, como sugere o primeiro pilar da Elevação, deixamos que a Natureza, inspirada pelas margens do Mekong, reequilibrasse a nossa energia benigna com um mergulho nas águas barrentas do maior rio de Sião.


Amanhã era dia de treinar o segundo pilar da Elevação.