Quando paraste de abraçar? - Diários de Milénia - Parte II


Era o meu terceiro dia em Milénia. Como vos tinha dito no capítulo anterior, tinha-me retirado para dias de treino a solo, na companhia do silêncio da minha alma.

Hoje iria passar o dia pelo Nordeste de Mílénia Centrum, ilha mãe do arquipélago sagrado e casa da Lagoa das Visões que vos referi no capítulo anterior. A Nordeste fica o Trilho do Desassossego, caminho milenar que deve ser feito ao por do Sol. Possuía centenas de miradouros incríveis e era muito acessível. Era um cenário de meditação para peregrinos e de treino introspetivo para Mestres e Aprendizes da Ordem dos Cavaleiros do Poder, mas tinha todo um ritual de acesso aos seus domínios e era protegido por guardiões que viviam na sombra.

Ao contrário do que possam imaginar, não tive qualquer dificuldade ou inconveniente para fazer o caminho. Acelerei o passo porque queria ver o majestoso por do Sol do alto da Ponta do Desassossego. Estava sozinho e queria viver aquele momento em silêncio.

Cheguei mesmo em cima da hora, mas para meu "quase desgosto" encontrei um desconhecido que procurava o mesmo cenário que eu. Acenei com cortesia e sentei-me em posição de Lotus para presenciar o momento e meditar. O forasteiro parecia respeitar o meu espaço e eu fiz o mesmo. Entretanto desliguei e deixei que o momento fosse meu. Em breves segundos olhei para a minha esquerda e percebi que o meu companheiro ausente estava a chorar enquanto sentia aquele momento. 

Deixei que o Sol acabasse de se recolher e num momento de interação questionei o meu companheiro do acaso:
- Nobre forasteiro, os meus sentidos cumprimentos. Posso questionar o que o traz por cá?
O desconhecido virou a cara, sorriu, voltou a olhar o horizonte e respondeu-me:
- O meu nome é Lucius, e o teu?
- Abraham de Ethérnia.
- Os meus cumprimentos Abraham de Ethérnia. Perguntas o que me traz por cá? No início não sabia, vinha só procurar-me. Depois, enquanto o Sol se punha, comecei a ler as estrelas lá longe e a rever todos os abraços que me esqueci de dar. Foi um momento difícil, estranho, mas ao mesmo tempo comum, não era só meu. Percebi que não estava sozinho.

Não vou falar da conversa que tivemos a seguir, mas aquele momento do acaso trouxe à tona o humano que sou e que na desculpa da maturidade ou do tempo contado se vai esquecendo de abraçar o que tem de abraçar. Na conversa que mantive com Lucius, nas lágrimas que partilhamos, lembrei-me da velha pergunta "Quando paraste de abraçar?" e lembrei-me da resposta que nos esquecemos de dar "Enquanto o meu coração permitir haverá sempre o próximo abraço..."