O segredo da Linguagem do Intocável - Diários da Areia - Parte IV


Eram os meus últimos dias por Jerash. Tinha vivido tanto em tão pouco tempo que me sentia perdido. Mas havia ainda mais uma aventura para viver, conhecer Hakaba, o Vulto do Deserto, que habitava no deserto de Wati Ram, no extremo leste de Jerash. 
  
Wati Ram é uma terra árida onde praticamente não habita ninguém. É uma terra inóspita, onde é impossível passar mais que alguns dias. De dia o calor é intenso, à noite os ventos são gélidos e cortantes. 

Hakaba era conhecido como o Vulto do Deserto por ser o único habitante permanente de Wati Ram. Conta a lenda que Hakaba dominara de tal maneira a Linguagem do Intocável, que mal precisava de se alimentar, passando grande parte da sua jornada em meditação num mundo paralelo. O deserto de Wati Ram e as suas condições austeras eram o cenário perfeito de recolhimento e focalização. 

Lendas à parte, aceitei a sugestão de Haxim. Juntamos mantimentos para vários dias e partimos rumo a Wati Ram para alguns dias de recolhimento e meditação com Hakaba. Cleo e Lucy, entretanto, haviam regressado a casa. 

Hakaba era um homem de poucas palavras. Dava-nos tarefas que tínhamos de decifrar e deixava-nos até que as conseguíssemos resolver. A maior parte eram exercícios de focalização e orientação. Outros eram tarefas banais como arrumar o espaço onde descansávamos ou reuníamos. Quando não éramos capazes, juntava-se a nós e demonstrava como o fazer, mas sem nunca fazer escapar uma palavra.
  
Ao fim de alguns dias a disciplina de Hakaba foi passando para nós. Nas tarefas que nos dava não havia uma fórmula certa, havia a forma como deixavas que a tua intuição te guiasse. A determinada altura o deserto e o silêncio tornaram-se naturais. 

Na noite antes de voltarmos à civilização, Hakaba levou-nos até um velho templo abandonado. A Lua estava intensa. Hakaba deu-nos sinal para prepararmos uma fogueira. Sentamo-nos e pela primeira vez ouvi a voz de Hakaba. De olhos no horizonte desenhado pela luz lunar, Hakaba lembrou-nos ao que vínhamos: 
- Antes de partirem lembrem-se porque aqui vieram... 
Era estranho ouvir o que dizia. Na minha cabeça eu apenas tinha embarcado em mais uma aventura com Haxim sem um objetivo fechado. Mas Hakaba continuou: 
- Como vós, foram muitos os que tentaram entender a Linguagem do Intocável. Tentar desvenda-la é o princípio para nunca a chegarem a entender. As palavras escritas e faladas conseguem descrever muitas das emoções e sentimentos que nos alimentam. Perceber a Linguagem do Intocável não é possível descrever. Ela mora entre a nossa intuição e o verdadeiro silêncio. Ela desperta quando deixamos que o tempo deixe de ser contado e nos ligamos aos elementos. Perceber o Intocável é sermos terra, água, ar e fogo ao mesmo tempo. Estamos ligados simultaneamente à natureza orgânica, espiritual e intangível. O Intocável vive simplesmente, não precisa de ser alimentado. Perceber a Linguagem do Intocável é aceitares que vais ter de recomeçar todos os dias e que essa é a oportunidade que não vais desperdiçar. Depois, como sabeis, há caminho a fazer.

E assim terminavam os meus dias em Jerash. O Abraham que partia era o mesmo, sem nunca ficar o mesmo.