Diários do Náufrago – O Horizonte da Harmonia – Parte V

 


Era o nosso nono dia por Terras das Ilhas do Vento. Estávamos na Ilha de Antão para participar no Festival dos Náufragos, evento que pretende homenagear todos aqueles que escolheram viver longe de tudo, como era o caso dos Feiticeiros da Ordem de Antão, instituição secular que dava vida ao festival.

Em concreto viemos ao Festival para participar no Desterro dos Náufragos, prova que testa a tua humildade e a tua capacidade de leres os teus círculos viciosos e virtuosos e como estes te afetam. Para um Mestre da Ordem dos Cavaleiros do Poder como eu e os meus companheiros, este seria um exercício de enorme relevância.

Estávamos divididos por grupos. Edh e Sims ficaram comigo. Sarah, Pachamama e Linus ficaram noutro grupo. A cada grupo foi atribuído um mentor. Connosco ficou Mestre Feiticeiro Loahd. A prova tinha lugar, como já vos tinha contado, no ilhéu do Desterro, a norte da ilha de Antão, na antiga prisão dos Feiticeiros de Antão.

O primeiro dia tinha sido passado a conhecer-nos. Agora começaria verdadeiramente o Desterro dos Náufragos. A prova passa por expormos aquelas que pensamos ser as nossas verdadeiras convicções, máximas e crenças, percebendo de que modo elas são produtos dos nossos ciclos viciosos e virtuosos. O objetivo final passa por perceber de que modo somos capazes de criar ciclos harmoniosos que façam sobressair mais as nossas virtudes sem, no entanto, deixar que esqueçamos os nossos vícios.

Loahd levou-nos a descer uma ingreme falésia até uma praia quase inacessível. Aí pediu que fizéssemos uma arena com enormes pedras de basalto. Pediu que colocássemos uma no centro. Indicou que nos sentássemos. Colocou então a seguinte questão:

- Lembram-se da vossa mais importante obra, do vosso mais impactante feito?

Todos acenaram com a cabeça. Ele continuou:

- Não preciso que me contem qual foi ou como foi. Quero que cada um se sente ao centro e nos ensine o que aprendeu com a sua obra. Quero perceber o que foram capazes de aprender quando sentiram que estavam a ajudar o outro.

O primeiro foi Sims:

- A lição que retiro da obra que me lembrei foi que sempre que achares que descobriste a tua sentença lembra-te de tudo o que foste, és e ainda podes ser. Aí perceberás que a única sentença possível é a pergunta “O que vem a seguir?”

Seguiu-se Edh:

- Lembrei-me do dia em voltei para a minha família. Aí percebi que somos a melhor versão de nós próprios no dia em que deixamos só de acreditar e passamos também a fazer o que de melhor podemos devolver ao mundo.

Era a minha vez. Eu havia-me lembrado do meu papel enquanto Mestre de alguns dos meus aprendizes com obras mais relevantes. Entre outros, lembrei-me Sofera, Tartarus, Pachamama e Nuhad. Lembrei-me de como havia sido feliz em tudo o que havíamos partilhado. Partilhei:

- A lição que gostaria de partilhar vem do meu papel de mentor dos meus aprendizes e do caminho que fizemos. Aprendi que há caminhos que nos levam à realização, há caminhos que nos levam à felicidade e há caminhos que nos levam à felicidade que nos realiza. Escolho a terceira hipótese.

Loahd ouviu-nos com atenção e pôs-nos em meditação durante quase meio dia até sol se por. Pediu-nos que nos focássemos no caminho que aquela aprendizagem tinha feito até aos dias de hoje e que mecanismo a tinha tornado tão importante. Pediu que meditássemos de olhos abertos e com respiração regular.

À noite voltamos à arena que havíamos construído com pedras de basalto. Um a um foi ao centro e deu a sua explicação. Invariavelmente argumentamos que havia sido aquilo para o qual tínhamos sido treinados e que com disciplina e resiliência havíamos aprimorado.

Loahd em nenhum momento nos corrigiu, mas ensinou-nos uma valiosa lição, o Horizonte da Harmonia:

- Ouvi com atenção o que me contaram. Não nego nada do que dizem, mas hoje gostaria de vos ensinar o Horizonte da Harmonia. Com ele conseguirão perceber que caminho estão a trilhar e se são mais produto dos vossos ciclos viciosos ou virtuosos.

Depois da introdução continuou:

- Cada uma das nossas aprendizagens e poderes passa por várias fases de maturação. Perceber cada uma delas ajuda-nos a entender se essa aprendizagem ou poder continua a ser saudável e multiplicador. Podemos estar numa de quatro fases: na fase da atenção; da concentração; de foco; ou na última das fases, fase de obsessão. A fase da atenção é a fase inicial onde percebemos as nossas limitações e o alcance do poder. Depois segue-se a fase da concentração onde aprendemos a usar o novo poder/aprendizagem dentro dos limites que nos foram ensinados pelo nosso mentor. Entretanto chegamos à fase do foco onde somos capazes de usar o novo poder/aprendizagem de forma autónoma e criativa, mas sem nunca nos esquecermos que todos os poderes/aprendizagens são finitos. Por fim, quando nos esquecemos que temos limitações, que há batalhas que não vamos conseguir ganhar e abusamos dos nossos novos poderes/aprendizagens entramos na fase da obsessão. Sejam quais forem os poderes ou aprendizagens que fizerem chegar ao mundo lembrem-se, o objetivo final é preservar a harmonia. Quando achamos que somos infinitos e ilimitados o caos lá estará à nossa espera. Não permitam que o vosso foco se torne em obsessão.

Este era mais um valioso contributo para o que estávamos a viver nestes dias e para o nosso futuro papel enquanto Mestres. A nossa estadia pelas Ilhas do Vento estava a chegar ao fim. Era altura de voltar a casa e à harmonia do nosso dia a dia, onde somos uma obra inacabada feita de virtudes e vícios.