Diários da Humildade - Até as torres mais altas começam no chão - Parte III

Quinto dia por Terras de Melody.

Nos últimos dias tínhamos sido levados até uma praia deserta para treinar mais um dos Legados da Humildade, o principio de "Sê capaz de eliminar a densa neblina da mente. Aí perceberás o som da essência que surge no vazio original".

Lamah, nosso Mestre por estes dias, enganou-nos. Convidou-nos a beber Rum da Aurora, bebida usada pelos Monges do Tempo (velha ordem de Monges Guerreiros), dizendo que era hidromel. Esta bebida punha-nos em transe e fazia-nos ver os fantasmas que continuavamos adiar na nossa existência terrena. Lamah tinha usado o Rum da Aurora para nos por à prova. Mas para recordarem essa história só têm de recuar ao diário anterior.

Hoje viajaríamos até à aldeia abandonada de Occi, velho feudo onde haviam morado os chamados reis caídos. Reza a lenda que foi para Occi que fugiram os últimos reis de Melody. No fim da Velha Era, com o surgimento da Ordem dos Cavaleiros do Poder, o poder foi devolvido às populações de cada território. Cada qual escolhia continuar com o seu Rei ou Rainha ou escolhia uma nova forma de poder eletiva. Em Melody, o último rei acatou o novo poder do povo e recolheu-se para Occi.

Era um dia de caminho por entre florestas íngremes, quase impossíveis de passar e dominadas por abetos gigantes.

Com o por do Sol como companheiro faltavam pouco mais de seiscentos metros para chegar. A ultima parte do caminho estava cravejada de figuras a contar a história de Melody e dos seus velhos reis.

Chegados à aldeia abandonada, completamente exaustos fomos descansar. Montamos acampamento e fomos dormir. Começaríamos logo pela alvorada.

Logo ao nascer do Sol, Lamah em tom de boa disposição fez tocar um sino. Já estavamos acordados, mas lá seguimos para mais um dia de treino.

A missão dada por Lamah passava por construirmos a maior torre possível alinhada com o Sol quando este se pusesse. O que usaríamos ficava ao nosso critério. Por respeito, não pretendíamos destruir nenhuma das velhas ruínas, por isso recorremos a rochas espalhadas pelo velho feudo e troncos caídos. Usaríamos a forma de uma pirâmide.

Enquanto empreendíamos a nossa obra descobríamos mais figuras que contavam a história dos reis de Occi, nomeadamente o último, Kio. Mas uma figura captou a minha atenção. A de uma espécie de rei gigante perante uma torre muito pequena. Chamei por Lamah para que me explicasse. 

Lamah, sempre sorridente, chamou por Mizegui e convidou-nos a sentar. Então começou:
- Espanta-me que já tenham encontrado esta figura. De facto ela é bem elucidativa do que Occi pretende contar. Estava a guardar esta reflexão para o final do dia, mas já que aqui estamos.
Impaciente, pedi a Lamah que fosse direto ao assunto. Ele assim o fez:
- Esta imagem representa que cada um é tão grande quanto as boas obras que foi capaz de produzir. Esta foi também a obra de Kio, último rei de Melody. Quando se deu a transição de poder, humilde e dedicado, devolveu toda a sua fortuna ao povo. Voltou para Occi, sua aldeia nativa, recordando a cada um que também ele havia sido um homem do povo. Só havia chegado a Rei porque era filho bastardo do anterior Rei. E assim, com base na sorte, pelo facto de o anterior Rei não ter herdeiros diretos, e sem esperar pelas horas certas que nunca existiram, Kio subiu ao poder. Mas nunca perdeu a noção de comunhão, disponibilidade e serviço. Na hora de mais uma revolução, soube qual era o seu local e hora. Assim voltou a Occi e regressou a casa. 

Durante horas ouvimos a inacreditável história do Rei Kio. Uma história incrível e um retrato concreto de mais um dos princípios dos Legados da Humildade, o de que "Até as torres mais altas começam do chão". Aliás, esta era a lição que Lamah queria treinar connosco com a prova que nos havia dado.

Terminamos a prova em grande. Ao fim do dia vimos um incrível por do Sol a escorrer por entre o pico da pirâmide que havíamos erigido. Esta era a nossa homenagem a Kio, o Rei Bom que voltara a casa para descansar a sua alma na eternidade.

Nesse dia recordava e refletia no meu diário o que significava "Até as torres mais altas começam do chão". Resumidamente não importa onde ou como nasceste. A grandiosidade e alcance do que foste ou do que és mede-se pelo que foste capaz de construir. E como nos conta a história de Kio, não há construção sem comunhão, disponibilidade e serviço.

Faltavam treinar mais dois princípios dos Legados da Humildade. Que aventuras se seguiriam?