Diários da Humildade - Escutar o som da tua essência - Parte II

 


Terceiro dia por Terras de Melody. Como vos havia contado, eu e o meu bom amigo Mizegui estávamos em Melody para treinar os cinco princípios dos Legados da Humildade com Mestre Lamah, Mestre das Artes da Humildade.

Nos primeiros dias de viagem tínhamos aprendido o principio de "lembra-te de cavar o poço que precisas ainda antes de teres sede". Basicamente, este princípio pretende lembrar que devemos ter um plano que antecipe as necessidades e ansiedades às quais não seremos capazes de fugir. Este princípio ensina-nos a não esperar pela tempestade e agir com prudência, evitando o desespero da decisão tomada com base numa realidade limite.

Hoje, logo pela manhã, descemos as escarpas de Scandola até uma praia deserta. Lamah convidou-nos a sentar, fechar os olhos, e em meditação ouvir o som da nossa essência que vivia no nosso cosmos interior. Não deu mais instruções. Era um exercício para o qual achávamos estar preparados.

Lamah tinha levado consigo hidromel. Enquanto tentávamos concentrar-nos, não parávamos de ouvir o velho Mestre a beber ruidosamente. Com o treino que tínhamos, conseguíamos isolar o som que queríamos ouvir e, dessa forma, aquele sussurro irritante era suportável. Mas Lamah parecia estar a fazer de propósito. Com o passar do tempo parecia fazer questão de aumentar o som. Éramos capazes de o ouvir engolir o hidromel. De qualquer forma, mantivemos a disciplina. Ao fim de um par de horas voltamos da meditação.

Lamah, um pouco alterado mas de sorriso nos lábios, questionou-nos:
- Amigos, o que conseguiram ouvir?
Respondi:
- Nobre Mestre, não te vou mentir. Mecanizei tanto o que estava a pensar que só te ouvia a beber o hidromel.
Mizegui absteu-se de dizer o que quer que fosse. Lamah voltou a perguntar:
- Mas fui eu que contaminei a direção para onde levaste os teus pensamentos ou foste tu que não sabias que direção seguir?
Vindo de alguém que nos parecia embriagado, a pergunta era desconcertante. Não sabia o que responder. Nesse momento, Lamah convidou-nos a beber com ele. Não resistimos. Por entre muito hidromel e brindes estranhos, Lamah começou a dissertar:
- Meus amigos, o som da essência do nosso cosmos interior é como cada brinde que damos. Quando temos o copo cheio quase não somos capazes de perceber o som dos copos a bater entre si. Se os esvaziarmos e batermos novamente os copos entre si o som fica mais cintilante, amplo e audível. O mesmo acontece com a nossa mente. Quanto mais repleta está, menos espaço tem para se ouvir a ela própria, para projetar a nossa essência. Esse é mais um dos princípios dos Legados da Humildade. Como diz esse ensinamento, sê capaz de eliminar a densa neblina da mente. Aí perceberás o som da essência que surge no vazio original.

Depois daquelas palavras deixamo-nos adormecer na areia da praia. Quando dei por mim vi-me perante a imagem do meu pai e da minha mãe. Corri para abraça-los mas a imagem desvaneceu. Entretanto virei-me e vi velhos amigos de jornada como Cleo, Alex e Fern. Percebi naquele momento que estava nas entranhas da minha mente. Por fim, ao longe, como uma sinfonia perfeita, surgia a voz de Sophie, minha aprendiz. Chamei por ela, mas só continuava a ouvir a música da sua voz. Deixei-me ficar.

De repente acordei daquele estado de embriaguez psicótica. O que Lamah nos dera a beber não podia ser hidromel. Lamah sorriu para nós e convidou-nos a voltar ao acampamento.

Há noite, novamente perante uma chávena de chá, Lamah partilhou:
- Não sei o que cada um de vocês viu hoje, mas as visões que cada um teve revelou o que muitas vezes vos impede de ouvir a voz da vossa essência, o que vos impede de voltar ao vazio original. Quando voltarem a casa não se esqueçam de esvaziar o espaço que está desnecessariamente preenchido, abracem quem falta abraçar, não tenham medo do colo que vos faz descansar e partilhem o amor que já não conseguem guardar.