Diários da Humildade - O que é o Fracasso? - Parte IV


Sétimo dia por Terras de Melody. Hoje a aventura seria pelo Golfo de Scandola. A nós haviasse juntado, Dury, aprendiz de Lamah.

O desafio passava por mergulhar nas águas do Estreito de Piana até um conjunto de grutas submarinas secretas que albergavam a última reserva de corais de Lum. São corais em forma de cristal que brotam uma luz avermelhada e que só sobrevivem em condições muito específicas. Os corais também eram conhecidos por reter as memórias esquecidas de quem lhes tocasse, fazendo com que as vivêssemos uma última vez. Era todo um contexto muito estranho, mas o meu coração ansiava sempre por novas aventuras.

Cedo percebi porque Dury viria connosco. Era especialista em mergulho em profundidade e uma das poucas pessoas que sabia o caminho mais seguro até às grutas.

Entrados no Estreito de Piana, atracamos o barco entre três monstruosos rochedos. Dury deu-nos uma especie de bebida energética que sabia horrivelmente mal. Era Trull, um xarope capaz de aumentar o número de minutos que passávamos debaixo de água. A partir daqui a aventura começou. Lamah não viria connosco. Mergulhamos e, de forma estranha, estávamos absolutamente confortáveis debaixo de água. Penso que seria do efeito do Trull.

A visão que tínhamos era deslumbrante. Vi peixes que nem sei dizer o nome e as cores do profundo azul eram uma especie de arco iris iluminado devido ao efeito flamejante de corais luminosos envoltos na luz do Sol que encandeava a profundezas.

Ao fim de alguns minutos chegamos às míticas Grutas Subaquáticas de Lum. Voltamos à superfície dentro do microclima das cavernas. Foi aí que tive uma das visões mais intensas que já havia vivido. Perante nós, um maciço de coral de Lum vivo, incandescente, como que a chamar por quem o via mesmo de frente.

Seguimos Dury. A partir daqui ela seria a nossa guia, intérprete e mestre daquele momento. De frente para o magestoso coral, Dury convidou-nos a seguir os seus passos e a deixarmo-nos ir. Fizemos uma vénia em sinal de respeito e depois, de olhos fechados, colocamos as mãos sobre as paredes do coral. A minha mente viajou naquele mesmo instante. 

Não sei o que aconteceu a Mizegui e Dury, mas eu tinha voltado à minha infância, tinha eu sete anos. Estava rodeado por dezenas de outras crianças, numa espécie de inquisição por algo de que teria culpa. Fui brutalmente espancado pela maior parte deles sem que pudesse dar qualquer tipo de resposta. Não me lembro o motivo nem a razão daquele episódio, mas era um dos meus traumas mais profundos. Lembro-me que depois daquele momento cheguei achar que não tinha amigos, isolei-me de parte do mundo e ergui muitos preconceitos sobre mim mesmo e das relações que considerava não ser capaz de manter nem alimentar. Sentia uma angústia profunda ao reviver aquele pesadelo.

Acabaríamos por voltar a terra e à ermida de Lamah. Estávamos todos em silêncio. Tinha sido um exercício muito pesado para todos.

Nessa noite, acompanhados por uma chávena de chá e um céu nublado, e já na companhia de Lamah, partilhamos o que cada um havia sentido, visto e vivido. No fim da partilha de cada um Lamah ensinou-nos mais um dos princípios dos Legados da Humildade:
- Como nos dizem os Legados da Humildade, fracassar não é cair, fracassar é não querer levantar-se. O facto de hoje todos estarmos aqui a relembrar o que somos e porque o somos deixa bem claro que nunca deixamos que o medo continuo tomasse conta de nós.
- O que é que chamas de medo continuo? - perguntou Mizegui.
- É o fracasso escondido que disfarçamos de prudência e esquecimento. É a história de insucesso e trauma que não contamos, esgotando a alma numa dor adormecida. Mas viver é isso mesmo, o ato de coragem que te leva a perceber e afirmar que o fracasso não pode ser uma escolha. Como já todos aprendemos, o nosso caminho é mais sobre como nos levantamos do que da forma como caímos.

Esta não era uma mensagem nova, mas era lição que durante o treino para Mestre e Aprendiz relembraremos vezes sem conta. Estava feito mais um dos Legados da Humildade, faltava-nos um.