Diários de Uhr - Como se constrói uma história para todos - Parte IV




Sétimo dia por terras de Uhr.
Em Uhr o tempo é suave. Lembro-vos que este é um território de paz, despojado de armas e ideias de confrontos bélicos. Este resultado devesse a mediação dos Atai, congregação monástica que rege estas paragens.

Uhr é um espaço de natureza onde as árvores têm o mesmo valor que os homens, onde o equilíbrio entre todos os seres vivos é mais que uma regra, é o estado natural da organização social.

Mas nem sempre foi assim. Hoje passaríamos o dia com Paul Mai, Mestre Mor dos Atai. Comigo estava a minha irmã Anny e Martin, o nosso companheiro de jornada por estes dias. Paul Mai iria contar- nos a história de Median, anterior Mestre Mor dos Atai que se perdera na sua demanda em busca da realidade perfeita.

Não fiquem com más ideias sobre Paul Mai. Ele foi o mais bem intencionado dos líderes, mas perdeu-se na ideia de que era possível viver e concretizar tudo e todos os projetos ao mesmo tempo.

Sentados em U perante o vulcão Arenal como cenário, Paul Mai contava que Median acreditava que era necessário elevar a existência, o próprio conceito de vida a um nível que o ser humano desconhecia. Os seus intentos eram nobres. Formou enumeras equipas de trabalho para as mais variadas áreas da gestão corrente de Uhr. Garantiu que cada um tinha o treino necessário para concretizar de forma bem sucedida a sua missão. Reunia quase diariamente com as equipas, nada podia falhar. Queria que a vida acelerasse o passo, permitindo que cada um visse o próximo nível. No início tudo corria bem. As equipas funcionavam, os objetivos eram cumpridos. Todos pareciam comungar do mesmo propósito. Median partilhava com os vários Lord Atai que "o tempo não tinha tempo para a nossa falta de tempo."
Mas esqueceu-se de algo essencial. Nem todos temos a mesma velocidade, e o tempo da natureza não é o tempo dos homens. Pouco a pouco, os vários projetos em curso iam ficando desalinhados, a visão de Median começava a estar desfasada do tempo real, das pessoas e da natureza de todos os seres vivos.

Até ao fim Median acreditou. Com naturalidade, perante tão incrível subida viria uma queda em voo picado de um dia para o outro. Bastou a Median ver alguns dos Mestres Atai abandonarem alguns dos projetos em curso para que o mesmo entendesse o quão efémera pode ser uma visão, um concretização, um tempo que gostaríamos que fosse de todos.

Median voou demasiado tempo perto do Sol e deixou que suas asas se incendiassem perante um fogo incandescente. Nunca estiveram em causa as suas boas intenções, mas o tempo de Median não era o tempo dos que o rodeavam.

Mediam retirou-se para sempre. O conselho dos Lords Atai reuniu para eleger um novo Mestre Mor, mas definiu regras para que jamais fosse possível ter tanto poder concentrado numa pessoa só, independentemente das suas qualidades.

Aquela história era poderosa. Quase no fim desta conversa questionei Paul Mai:
- Mestre, o que achas que faltou a Mediam para ter sucesso?
Ele suspirou, mas respondeu:
- É muito difícil responder a essa demanda. Acredito que Mediam se esqueceu de noções básicas como a humildade, o recato, o realismo e o efémero. Mas acho que sobretudo lhe faltou a disciplina e a integridade do que é a responsabilidade no "nós". Voou demasiado tempo perto do Sol. Hoje acredito que um líder de uma comunidade deve ser inspirador, digno, disciplinado e proativo. Mas deve ao mesmo tempo ser cúmplice dos seus pares, recatado e perceber que a finitude está sempre presente. Na arte de decidir por todos, pondera, lembra-te que representas todos. Pode demorar mais tempo a decidir, mas esse é o preço do caminho em que todos têm lugar.

Era uma história para recordar e partilhar. Pensado na minha vida, não gostaria de olhar para traz e ver que o castelo que ajudei a erguer se tinha tornado numa casa abandonada. Amanhã haveriam mais histórias para contar.