Diários de Uhr - O trilho do Crocodilo - Parte I



Por estes dias estava de volta à viagem, essa jornada interminável que nos leva aos recantos do que podemos e não podemos ser. Não há nada como mais uma viajem para perceber que começar todos os dias é a mais natural e abençoada das oportunidades.

Viajava para Uhr, território a quatro dias de viagem de Ethérnia, a minha casa. Dois dias de barco, um a pé e outro a cavalo. Pela primeira vez fazia uma grande viagem com a minha irmã, Anny.

Uhr era conhecida como a Terra Impenetrável, pelas suas luxuriantes e densas florestas, a maior parte delas ainda inexploradas. O aglomerado de plantas e árvores era tal que em algumas áreas estávamos perante imensas muralhas de verde inexpugnável. Para terminar este quadro épico, para circular entre estas florestas intermináveis só de barco e a pé. Os rios que esventravam a densa floresta perdiam-se por entre milhares de labirínticos canais. Mergulhar era arriscado. Com muita facilidade seriamos visitados por um crocodilo ou caimão, dispostos a fazer de nós a sua próxima refeição.

Uhr era um território sem guerreiros, generais ou qualquer outra ideia que fluísse com uma lógica de guerra. Uhr era uma terra de paz e de tranquilidade, governada pelos Atai, congregação monástica que habitava nos bosques mais antigos do território em harmonia plena com o meio natural.

Os seus mosteiros entrincheiravam-se entre as árvores. Passavam grande parte do dia a meditar. Entre os Atai haviam os Lord Atai, os que geriam o território, protagonizavam o sistema judicial e serviam como mediadores nas mais variadas comunidades desta terra cravada de verde.

No primeiro dia em Uhr viajamos até Guero. O nosso objetivo era conhecer Martin, Lord Atai destas paragens. Seria ele o nosso anfitrião dos próximos dias.

Neste início de jornada, Martin convidou-nos a fazer o chamado Trilho do Crocodilo. A ideia passava por fazer este milenar trilho de forma despercebida até ao local onde os crocodilos nidificavam. Com alguma sorte poderíamos ver algum crocodilo a nascer.

Eu e Anny éramos caminhantes experimentados. Mas o Trilho do Crocodilo não era bem um trilho. Na prática era um emaranhado de caminhos que se confundiam uns aos outros. Em algumas zonas, devido à floresta inexpugnável, tínhamos de subir às árvores e voltar a descer. Martin contou-nos que nunca repetiu o mesmo caminho, mas conseguiu sempre chegar ao destino.

Depois de várias horas e algumas quedas após, chegávamos ao local que procurávamos. Martin pediu para ficarmos silenciosos e deixar que a natureza falasse conosco. Eram dezenas de crocodilos a cuidar dos seus ovos num espetáculo de tranquilidade e silêncio. Foi um momento de estranha conexão com seres que estamos habituados a temer. Após algumas horas era altura de regressar. Estávamos em paz, mas ao mesmo tempo conscientes do riscos que havíamos corrido. Era um sentimento de satisfação e superação.

Nessa noite enquanto ceávamos e partilhávamos a aventura deste dia, Martin deixou-nos uma reflexão que acho que merece ser partilhada. Dizia ele:
- Fazer o Trilho do Crocodilo é perceber a criatividade e a verdade em simultâneo. Aprendi que a criatividade com a verdade são uma dupla plena. A criatividade inventa o caminho, a verdade desvenda as armadilhas.

Amanhã a aventura continuava.