Diários de Uhr - A raridade, o medo e a esperança - Parte II

Terceiro dia por Terras de Uhr. Estava em viagem com a minha irmã Anny. Como vos contara no capítulo anterior, tínhamos vindo aprender a estranha forma de estar e costumes dos Atai, congregação monástica que governava estas terras.

Hoje, o nosso anfitrião Martin, Lord Atai de Guero, iria desvendar-nos os segredos das florestas húmidas de Guero pelos labirinticos canais da sua imensa mancha verde. O nosso objetivo era conhecer Cisko, também ele Lord Atai, conhecido como o Lord Pescador. Cisko era um velho amigo de Martin. Ele esperava que as suas histórias nos elucidassem melhor sobre a vida por estas terras de paz, tranquilidade e "tempo lento".

Preparamos um bote, recolhemos os mantimentos que precisávamos e partimos. Estava eu, Anny e Martin. 

Uhr é uma vastidão de verde e biodiversidade. Em cada recanto era possível avistar através do bote tucanos, araras, garças e todo o tipo de aves exóticas. Mais à frente famílias de macacos acercavam-se de nós. Num momento de pura sorte, que nunca mais apagarei, conseguimos avistar um puma a atravessar o rio por entre dois crocodilos, enquanto um aglomerado de araras surgia no horizonte. Que momento! Foram segundos de intensidade e brutalidade. A visão que tínhamos tido era de uma beleza complexa e de rara oportunidade. Durante o resto do caminho até à cabana de Cisko, Martin explicava-nos que aqueles segundos que tínhamos presenciado eram uma missão de avistamento quase impossível. Tínhamos sido abençoados. Por fim, depois de umas horas de caminho, lá estava a cabana de Cisko, erguida a dez metros do chão, num frondoso embondeiro.

Cisko lançou uma escada do topo da cabana. Um a um, subimos. Cisko recebeu-nos com um chá e um pouco de bolo de coco. A conversa fluiu naturalmente. A noite chegou e Cisko desafiou-nos a subir ao topo da árvore onde ficava a sua cabana. Tinha a esperança de nos revelar as lendas de Uhr no céu pleno de estrelas. No topo da árvore, Cisko havia construído uma plataforma. Era um local majestoso. Os sons da floresta à noite misturadas com a luz das estrelas, davam palco a um cenário reconciliador.

Cisko perguntou-nos:
- Nestes primeiros dias, de que forma Uhr vos conseguiu tocar?
Não era muito difícil responder. Em apenas três dias, Uhr tinha conseguido afirmar a sua diferenciação. Mas o que mais marcava eram as experiências de escassos momentos, que nos resgatavam para o sentimento do quanto a vida pode ser efémera. Partilhamos a história do puma e dos crocodilos e como aquele momento era singular. Provavelmente nunca mais assistiriamos a algo semelhante. Após essa partilha, Cisko voltou a perguntar:
- Abraham de Ethérnia, em poucas palavras, como desenharias esse momento numa emoção?
- Não é fácil, nobre Cisko. Reaver o momento e a emoção que provoca é como despertar o medo e a esperança ao mesmo tempo. A esperança de o voltar a viver e o medo de saber, que apesar da sua intensa beleza, aquela era também uma situação perigosa. Ao mesmo tempo sinto o medo de não voltar a viver o que aquele momento me despertou. É um mosaico complexo, mas claro. Compreendes?
Ao meu desabafo, Cisko replicou:
- Abraham, os Atai ensinam que o medo e a esperança em equilíbrio são uma escala poderosa, ajudam na integridade e na missão de nos percebermos na verdade do que somos. O medo e a esperança extremados numa mesma escala, são um perigo eminente, o primeiro passo para a depressão, para o abismo, para nos perdermos nos alçapões da nossa mente. Experimentaste o medo e a esperança na sua melhor versão. Experimentaste a raridade.
Depois desta reflexão, Cisko e Martin prosseguiram com as suas histórias. Entretanto era hora de nos retirarmos. Amanhã haviam mais aventuras.