Diários do Reencontro - "Morrer para nascer outra vez..." -Parte III


Estava no meu sétimo dia por Milénia. Estava no Conselho de Mestres da Ordem dos Cavaleiros do Poder. Dezenas de Mestres juntaram-se para refletir acerca da nossa premissa coletiva, distribuir as novas missões e meditar em homenagem aos Deuses da Criação.

A dirigir os trabalhos estava Mizegui Takasugui, Mestre Guardados de Sonhos, e um dos meus grandes amigos de caminho. Depois de treinarmos as artes meditativas, orientação e conexão com os elementos, era altura de passarmos a outros desafios. Estávamos, por agora, na ilha de Gorge.

O próximo destino era a Montanha do Silêncio e o exercício da Morte Cega. Este era um exercício que todos os Mestre tinham de passar várias vezes. Desconfortável e desconcertante, o resultado nunca se repetia. 

Cada um, solitariamente, e sem nunca se pronunciar sonoramente, apenas acompanhado pelo seu próprio silêncio, subia até ao cume da Montanha até à Poça da Morte Certa. Já de olhos na Poça, cada um mergulhava tentando atingir o mar através de uma série de canais que ligavam a Poça da Morte Certa, no cimo da Montanha do Silêncio, ao mar raso. Entretanto deviam fazer o seu caminho de volta até as Fajãs do Silêncio, onde havíamos montado acampamento. 

Sempre que fazíamos este exercício nunca voltávamos os mesmos. Reza a lenda que as águas da Poça da Morte Certa, possuídas pela magia da Criação, te levam de volta ao ponto em que te deixaste perder, em que desejas nunca mais voltar, que recalcaste para jamais recordar. O objetivo passa por confrontar cada Mestre com a sua própria perdição para que não mais possam lá regressar.  Por isso tem o nome de Morte Certa. Não significa a morte do corpo, mas a morte da pior versão que um dia cada Mestre havia escolhido. Tudo acontecia durante a travessia entre o mergulho na Poça e a chegada ao mar raso.

Nessa manhã cada um partiu na sua vez. Eu fui a seguir a Ant Elael. Estava com medo, muito medo. Não sabia que portas ia abrir na minha memória, que feridas voltaria abrir. 

Demorei cerca de quinze horas. Já perante a Poça e embrenhado num enorme silêncio não esperei muito. Mergulhei, amplifiquei os meus sentidos e deixei que a corrente me levasse. Passados alguns segundos desliguei. Acordei no que parecia ser Islam e o Templo das Lágrimas de Sangue, uma das minhas principais casas de treino. Estava de volta a um momento de treino com Ant Elael, um dos meus velhos Mestres e que havia partido para a Montanha do Silêncio antes de mim. Estava a chorar desmesuradamente e este abraçava-me. Tinha sido expulso do meu Clã pelas escolhas fáceis que havia feito e que agora preferia esquecer. Lembro-me que todos me haviam virado as costas. Apenas Ant Elael havia ficado. Era um daqueles momentos em que não percebíamos o que era a culpa, a justiça, a lógica e o legado que havíamos construído. Lembro-me que depois desse momento tive de começar quase tudo outra vez. A recordação daquele momento trazia de volta uma dor incomensurável. Lembro-me também das palavras de Ant Elael: "Vai e procura o que ainda te espera. É por lá que deves recomeçar...".

Horas mais tarde, dei por mim a flutuar em mar aberto em frente às Fajãs do Silêncio. Tinha recuperado os meus sentidos e agora sim, estava acordado.

Deitado a flutuar num mar calmo e sereno pensava  que há versões do que fomos que têm morrer para que o teu novo Eu te possa exercer. Não é a memória que morre, não é o teu reflexo que morre, muito menos o que foste. Tem de morrer o que não podes voltar a ser. Nesse momento transporta o que resta para o lugar que ainda te espera. Se ele não existe, ainda existes tu, e isso terá de bastar.