Diários do Reencontro - A boa colheita... - Parte V

Estava nos meus últimos dias pelo Arquipélago de Milénia e no Conselho de Mestres da Ordem dos Cavaleiros do Poder. Liderados pelo Mestre Guardador de Sonhos, Mizegui Takasugui, tínhamos treinado velhas artes ancestrais de meditação, orientação, de gestão do nosso silêncio, de conexão com os elementos e sobre a nossa noção de consistência. Hoje, como última prova, Mizegui poria à prova os nossos sentidos mais primários. 

Era suposto fazermos o Caminho da Peregrinação Impossível que ligava a Lagoa das Visões à Lagoa dos Vendavais. Apenas metade dos Mestres conseguiam concluir esta prova. Era um desafio físico e mental brutal. Poucos estavam à altura.

O caminho era todo feito vendado. Incluía escalada, mergulhar em túneis subaquáticos, passar por desafios que incluíam atravessar desfiladeiros por entre cordas suspensas, nadar entre as margens da Lagoa dos Vendavais e por fim escalar um enorme embondeiro onde terminaria a prova e nos era retirada a venda. Mais que testar capacidades físicas a prova pretendia despertar os nossos sentidos para além da visão. Mas o verdadeiro desafio era escalar a Cascata dos Vendavais antes do embondeiro que vos falei. 

Atravessada a Lagoa dos Vendavais segue-se a Cascata com o mesmo nome. A torrente de água é avassaladora. Escala-la é quase impossível. Era aqui que metade dos Mestres desistia ou simplesmente percebia que não era capaz.

Fui o oitavo a sair. Com muito sacrifício fui capaz de passar cada obstáculo. Por cada desafio recorria aos meus sentidos mais primários e a tudo o que havia treinado. Tinha chegado a vez de nadar toda a Lagoa dos Vendavais. Deixei que o som da Cascata dos Vendavais lá ao longe tomasse conta da minha audição e lancei-me à água nadando na sua direção. Cada metro galgado dava origem a um som da água a bater cada vez mais ensurdecedor. Estava na hora. Ainda na água, vendado, tinha de conseguir escalar a Cascata até ao embondeiro. Fiz uma primeira tentativa mas a torrente de água nem me permitia tocar em rocha sólida. Tentei o mesmo procedimento mais uma dezena de vezes. Estava a ficar sem forças. Num esforço último, e quase sem força, lancei-me em profundidade e consegui agarrar-me a rocha firme. Comecei então a subida impossível. Cada elevação era feita em muito esforço contra a violenta torrente de água. Estava a conseguir até que... as forças me faltaram e a torrente de água me devolveu de forma abrupta à Lagoa dos Vendavais. Depois, não havia muito mais a fazer, a minha prova ficava por ali.

Mais de metade dos Mestres não havia conseguido superar a prova e eu era um deles. 

Há noite, em arena, com uma fogueira a iluminar a nossa assembleia, Mizegui questionava-nos sobre o que havia faltado para que não conseguíssemos terminar a prova. Cada um foi capaz de perceber o que havia faltado no seu treino. No meu caso não havia, no devido tempo, treinado a minha conexão com a água e aprender a utilizar a mesma como um indutor. Ou seja, ser capaz de manipular a água ao ponto de abrir passagens que me permitissem avançar perante esta. 

A este respeito, Mizegui lembrou que cada um colhe o que escolheu plantar no tempo certo e o resultado do Caminho da Peregrinação Impossível, em parte, era resultado disso mesmo. Ficam aqui as suas palavras:

- A vida do hoje é o que plantaste na jornada do ontem. A melhor hora para se começar a plantar teria sido há 25 anos atrás, a segunda melhor é hoje. Já não podes plantar as aventuras passadas, mas podes começar a sonhar todas as outras que te faltam viver. Não adies mais a boa colheita, começa hoje a plantar as boas aventuras que vais querer colher.

Os meus dias no Conselho de Mestres haviam chegado ao fim.